22.10.06

A Culpa de Todos Nós
Elementos para uma análise critica de “O Processo” de Franz Kafka




Em “O Processo”, de Franz Kafka, o personagem central, Joseph K. sem o saber está imerso num sentimento de culpa inconsciente. Eis sua tragédia pessoal singular que o atinge naquela manhã. De repente, o “sistema” o acusa sem que ele saiba do que, nem porquê. Mas cada vez mais ele age (ou tenta não agir) como se tivesse culpa. Joseph K. luta contra o sentimento de culpa como um fetiche da subjetividade estranhada que o devora. É curioso que, como observa Friedrich Nietzsche, em “Para a Genealogia da Moral”, em alemão a palavra culpa é a mesma para dívida.

Ora, Franz Kafka, a seu modo, soube expressar, de modo visionário, a natureza grotesca e de certo modo, pós-trágica, das teias da manipulação da terceira modernidade do capital (que se desenvolveria nas décadas após a II Guerra Mundial). A partir da periferia do centro capitalista (Kafka vivia em Praga, no Império Austro-Hungaro), o autor tcheco conseguiu prenunciar, através da sua narrativa fantástica, elementos constitutivos do sócio-metabolismo da barbárie social, do homem singular como individualidade de classe, imerso nos labirintos do capital global.

Mas a tragédia pessoal de Joseph K. é um fato singular extremo: ocorreu com ele e não com outro individuo de classe, homem ou mulher, imerso na sociedade do trabalho estranhado (talvez, em seu íntimo, Joseph K. tenha se interrogado: por que eu?). Estamos diante de uma tipicidade extrema, fantástica, quase fantasmagórica, que impregna os personagens de Franz Kafka (como Gregor Samsa em “A Metamorfose”). A psicanálise diria que é a manifestação do “destino” oculto de todos nós: o inconsciente, permeado de sentimento de culpa. Os existencialistas até poderiam interpretar a sina de Joseph K. como sendo um dado ontológico da perda irremdia’vel do homem no mundo. Dizia o Sartre existencialista, “o homem é um ser jogado no mundo, destinado à morte”. Mas a sociologia critica apreenderia, por outro lado, elementos sócio-históricos que explicariam o hic et nunc (o aqui e o agora) desta manifestação inconsciente como fato sociológico: a estrutura social da sociedade das mercadorias e do trabalho estranhado, que aliena o homem do controle de suas condições objetivas e subjetivas da produção de sua vida material.

Na verdade, em “O Processo” não existe uma metafísica da culpa ou do estranhamento como dado ontológico do homem. Se observarmos com cuidado, iremos verificar que Kafka trata em seu romance clássico, de fenômenos sociológicos candentes da segunda modernidade, prenunciando deste modo, a própria negação do modernismo clássico, constituindo assim uma nova forma romanesca. Em sua narrativa, estão categorias sociais histórico-concretas como o funcionário corporativo, o empregado da área de administração de uma empresa privada ou pública (vale dizer que o mundo social de “O Processo” é o mundo do funcionário corporativo), representação típica da persona do capital e do homem comum como mero trabalhador assalariado imerso no cotidiano da pseudo-concreticidade (ora, o que era a vida cotidiana de Joseph K.? Como podemos observar, ela estava imersa em desejos ocultos e contidos). No mundo social de Franz Kafka as personas do capital tornam-se funcionários corporativos e todo trabalhador assalariado aparece como o homem comum, pequeno-burgues assalariado (como Joseph K. ou Gregor Samsa).

Enfim, em Kafka não há euforia, mas só angústia com os novos tempos. O espírito modernista contém em si, euforia e angustia. Mas Kafka não é modernista. Sua narrativa é quase pós-modernista, um pós-modernista na segunda modernidade do capital; o que é um paradoxo notável, tendo em vista que o espírito modernista constituiu a segunda modernidade. Por isso, sua condição de visionário do drama burguês tardio.

Joseph K., empregado mais qualificado de banco (como Gregor Samsa, vendedor ambulante, empregado de uma firma do comércio), posta-se, diante de sua vida transfigurada numa certa manhã. Se a narrativa de Kafka, tanto em “A metamorfose”, ou “O Processo”, se iniciam numa certa manhã, na aurora do dia, no despertar de uma noite de sono, seu discurso romanesco possui elementos oníricos. Aliás, não há despertar em Kafka. O que se vive é um eterno pesadelo, quase surrealista.

Tal como Dom Quixote de Cervantes, Joseph K. é um estranho no mundo do capital. Se Quixote delirava e seu destino é trágico, Joseph K. não delira – é o mundo social como fetiche (e por ser fetiche) que alucina e o envolve. Eis o sentido social de sua tragédia pessoal. Ele é parte de uma alucinação grotesca, permeada de sombras, de claros-escuros.

Em Kafka a inversão estranhada está pressuposta na própria posição dos elementos romanescos. O personagem é parte de um delírio onírico do mundo. Num primeiro momento, podemos dizer que não é o sujeito que se desestrutura, mas sim o mundo que o cerca (o que invalida, deste modo, a análise meramente psicanalítica).

Entretanto, podemos perguntar: o que é o sujeito, nas condições de crise da objetividade, que marcou a visão de mundo burguesa na virada para o século XX, senão o próprio mundo ? Em última instância, é o nada, o vazio. Assim, o sujeito em Kafka está suspenso em si, sem fundamentos, pois seu terreno ontológico se desmanchou. O homem, o herói romanesco, está suspenso. É desta forma que ocorre a morte do herói burguês. Ele morre abstraído do mundo que o concebeu. É o mundo delirante que o consome num pesadelo persistente. Mas não se trata de um pesadelo, de um estado onírico, mas da própria existência social do sujeito burguês.

Com Cervantes e Kafka, o gênero romance expõe sua capacidade heurística de apreensão das tendências de desenvolvimento do sócio-metabolismo da civilização do capital. Se Cervantes prenunciou no século XVI, no bojo da primeira modernidade do capital, os impasses do modernismo, a tragédia do herói problemático diante da ordem moderna propriamente dita, com seu desencantamento do mundo (como diria Max Weber); Frank Kafka, na primeira metade do século XX, prenuncia no bojo da segunda modernidade, as situações grotescas que iriam se exacerbar nas condições históricas da terceira modernidade e do sócio-metabolismo da barbárie social.

Podemos dizer, deste modo, que Kafka é o Cervantes do capitalismo apodrecido. Kafka prenuncia não apenas a morte do herói no romance burguês, que enquanto representação contingente da individualidade de classe não encontra horizontes utópicos diante de si; mas prenuncia a abolição do próprio problema: ora, se há apenas o processo, sem que se saiba qual a acusação, não há problema. Aliás, o problema se identifica com a própria existência em si e para si. A acusação é tão incognoscível quantos os desígnios da existência.

Numa apreensão imediata, a parábola de Kafka, no limiar da própria negação da forma romanesca, trata do non-sense e da existência sem sentido. Mas seria mesmo sem sentido ou seria apenas existência. Talvez sem sentido fosse buscar sentido nesta existência burguesa, como busca Joseph K através do desvelamento do seu processo.

Franz Kafka é o escritor da barbárie social, contida in germe no capitalismo financeiro, o capitalismo imperialista, da era da financeirização, onde a lógica das dividas permeia a fenomenologia da produção e reprodução social. Por isso, o sentimento de culpa que move Joseph K. é a culpa imputada, tão abstrata quanto a individualidade de classe imersa em sua existência contingente, ao sabor da sorte e do azar, como num imenso "cassino global"; e tão abstrata quanto o trabalho produtor de mais-valia, o trabalho estranhado do industrial worker em “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Além disso, o mecanismo sócio-psicológico que constrange Joseph K. é o ardil da culpabilização da vítima, tão utilizado no capitalismo neoliberal, através por exemplo, da ideologia da empregabilidade que tende a culpar a vítima do desemprego pela sua tragédia pessoal. O ardil da culpabilização da vítima é um dos elementos do sócio-metabolismo da barbárie. É uma tipo de avassalamento da subjetividade humana. Na verdade, a tragédia pessoal de Joseph K. é a apropriação devastadora de seu sentimento de culpa, ligado à dimensão inconsciente de sua singularidade em si, pelas instâncias sistêmicas ocultas. Foi esta manipulação do “sistema” que o transformou em vítima de si.

Em Kafka, o processo que constrange Joseph K. se confunde com a própria teia da vida, tão oculto quanto seus desígnios. Assim, o romance “O Processo” pode ser considerado a alegoria grotesca da vida do individuo de classe nas condições históricas determinadas do capitalismo das dividas, do capitalismo financeiro, descrito por Rudolf Hilferding e considerado por Lênin como sendo a etapa final do capitalismo moderno.

Seria interessante apreender na estrutura narrativa de “O Processo”, obra problemática em si, tendo em vista que é fragmentária, alguns elementos narrativos que permitam uma reflexão sobre a fenomenologia da barbárie social. O enredo de “O Processo” é quase um laboratório virtual onde podemos constatar a sintomatologia de uma subjetividade negada a partir da própria alucinação que acomete o mundo social que lhe cerca. Como salientamos, o delírio no romance de Kafka não está no personagem Joseph K., mas no seu entorno social. É um caso de delírio objetivo, tal como se transfigura nas etapas de bolhas especulativas do capitalismo das dividas. O que quermos dizer que Kafka sugere uma metáfora subjetiva dos tempos de financeirziação exacerbada.

Ora, o que se fazer quando a alucinação é condição estrutural do próprio objeto que funda a subjetividade do sujeito? Não há saída em “O Processo”, apenas apelos que se esgotam, pouco a pouco. O romance kafkiano pode nos ajudar a refletir, de forma critica, sobre a sociedade burguesa em sua etapa de sócio-metabolismo da barbárie.

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