29.10.05

As Perdas de Cipriano Algor
Uma Análise Crítica de A Caverna, de José Saramago

A literatura é um campo aberto para a reflexão sociológica. Através dela podemos nos dar a oportunidade de refletirmos sobre o mundo dos homens e desvelar suas relações sociais. É o iremos tentar fazer neste pequeno ensaio critico sobre o Capítulo 1 do romance A Caverna, de José Saramago. O objetivo é contribuir para a prática de reflexão sociológica através da literatura. Ou seja, o exercício de uma reflexão critica sobre o mundo burguês através da literatura romanesca.
Este não é um artigo de crítica literária, embora consideremos a importância desta especialidade, mas sim um ensaio de literatura e sociologia, onde o romance é um pretexto para a reflexão crítica sobre a civilização do capital. Ao ler o capítulo 1 do romance de Saramago divagamos sobre traços da sociabilidade estranhada do capital. Acompanhamos o autor em seus rastros literários e divagamos, numa perspectiva sociológica critica. Deste modo, o que temos são meras indicações para uma investigação sociológica, apreendidas a partir da leitura da prosa literária de Saramago.

O tema da perda é constante em A Caverna, de José Saramago. Cipriano Algor é o personagem principal desta tragédia de perda. Perda do produto do trabalho, perda do trabalho, perda de si, perda dos outros...Deste modo, o tema da alienação e do estranhamento é um tema crucial em Saramago. Este também é tema constante nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx (1842). Em seus manuscritos de Paris, o jovem Marx se debruça sobre o processo de modernização capitalista e seus efeitos sobre homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho. Este se tornará o eixo temático constante das incursões teóricas de Karl Marx (e de Friedrich Engels) em sua crítica da lógica férrea do capital).

Na verdade, o drama da modernização capitalista, do avanço da grande indústria e do mercado mundial, é o drama da alienação com seus múltiplos impactos sociais. O trabalho vivo está imerso num complexo de perdas, de desenraizamento, lançado no mundo, nu e desarmado. Esta é a perda da proletariazação e da própria condição proletária, que iria marcar a modernidade do capital. Mas existem etapas do processo de perda, de alienação e de estranhamento. Ele é um processo com gradações de múltiplas intensidade.

Existe, por exemplo, a perda como proletarização. É o caso de Cipriano Algo – ele é um artesão, com negócio próprio, que se encontra desvalorizado pelo mercado mundial, cuja expressão é o Centro. Ele ainda não é um proletário, mas um artesão em processo de proletarização, pois logo irá à falência e perderá seu trabalho, seus meios de produção e sua própria atividade de vida. O destino de Cipriano é o de milhões e milhões de pequenos artesãos que se proletarizaram no decurso das Revoluções Industriais que marcaram o capitalismo moderno (não seria a globalização mais uma forma de Revolução Industrial dos nossos tempos?).

Os velhos artesãos foram obrigados a abandonar seu trabalho e ir trabalhar nas manufaturas. Alguns pereceram na miséria e no desamparo social. Enfim, o capitalismo afluente é uma máquina de moer gente, que, deixado por si só, aparece como um “moinho satânico”, como diria Karl Polanyi em “A Grande Transformação”. Cipriano está, portanto, imerso na primeira etapa deste processo histórico de perda ontológica do homem capitalista.

É a etapa mais cruel, pois o trabalho vivo ainda preserva a memória do que foi e tem a lúcida percepção de que está deixando de ser o que é. Existe uma dor profunda que percorre “A Caverna” – a dor da perda dos meios de produção da vida, uma dor que o operário e o empregado assalariados não mais tem, pois estão imersos no sistema do capital, vendo-o com certa naturalidade (ou “fetichismo”), aceitando o destino do trabalho assalariado.

Por exemplo, este é o caso de Marçal Gacho, genro de Cipriano, empregado do Centro, mero trabalhador assalariado, guarda residente deste império comercial. Marçal está tão estranhado quanto Cipriano. Mas o estranhamento de Cipriano é outro - ele sente a dor da perda própria do destino típico dos desenraizados.

Quem é operário ou empregado, sente outro tipo de perda e de estranhamento – a insatisfação com o que faz, a não-identidade com sua atividade laboral, a alienação do produto do trabalho, e portanto a alienação de si e dos outros (tudo aquilo que Marx tratou nos Manuscritos). Entretanto, Cipriano ainda não sente tais determinações sistêmicas do ser-aí capitalista. Ele está ainda na primeira fase, no processo de perda, onde a dor é perplexa, desnorteadora, intrinsecamente existencial, pois ele sente, no âmago da alma, a perda de uma parte de si. Ele ainda é artesão e cultiva seus ideais.

A idéia de desenraizamento é muito forte em “A Caverna”. Levando às últimas conseqüências, é a idéia de arrancar da terra (ou do barro, matéria-prima do trabalho artesanal de Cipriano Algor) as raízes, e jogá-las ao leú. Deste modo, Cipriano não é o proletário que Marx trata em seus Manuscritos de 1844, pois aquele já está imerso no sistema da produção capitalista e da grande indústria. Cipriano ainda não é proletário - está no limiar do Nada, da não-futuridade. Ele contempla o Abismo e projeta sua angústia contida.

Cipriano Algor vive (e sente) o drama da alienação em seus primórdios - é a alienação/estranhamento como despossessão e espoliação de sua atividade laboral, de seu pequeno negócio pelas forças do mercado mundial. Por isso, é interessante apreender o sentido particular deste tipo de estranhamento de Cipriano Algor. É um estranhamento de transição, talvez mais doloroso, pois ainda existe a memória do ser que está sendo desefetivado (o próprio Marx considera a alienação como desefetivação).

Mas Cipriano não vive de memórias, embora as tenha em demasia (Saramago não usa flashbacks). Não lamenta o passado. Encara o presente em si, buscando saídas, até acreditando nelas. Enfim, o próprio Centro ainda lhe dá (ou parece que dá) alternativas de vida. Existe ainda certa margem de ilusões, tão precárias quanto a condição humana de Cipriano Algor.

Enfim, tal etapa de perda primordial é caracterizada pelos tons de cinza, de claro-escuros, idas e vindas, tal como a própria trajetória de Cipriano, quando se desloca até o Centro para vender suas mercadorias e retorna para sua pequena aldeia. É importante identificar a fenomenologia de tal transição dolorosa.

É claro que Cipriano tem sorte, pois, de imediato, possui alternativas de vida (indo a falência, poderá viver com a filha e o genro no Centro) – um dado contingente, do personagem em si. Mas cabe dizer – esta vida de Cipriano é a vida na própria morte, morte de si, pois viver no Centro é uma morte a prazo para quem, um dia, teve seu próprio negócio. Seria outro tipo de vida – poderia Cipriano almejar vivê-la?

Um detalhe curioso, mas sintomático: como escritor genial, Saramago joga com as palavras. Seu estilo é corrido, veloz, sem pontos e ponto-e-virgulas. Tal como a vida moderna, não dá folêgo ao leitor. A forma literária expressa o conteúdo da vida perdida. Saramago precariza a forma romanesca, subvertendo o estilo narrativo. Expõe a crise da modernidade no ato de escrever. É irônico em demasia.

Em "A Caverna", um romance de perdas irremediáveis, o cão de Cipriano chama-se Achado. José Saramago é tão irônico quanto Graciliano Ramos que deu o nome de Baleia ao cão de seu romance Vidas Sêcas - uma Baleia imersa num mundo sem oceano, o mundo do sertão nordestino; em A Caverna, um Achado imerso num mundo de homens perdidos. A literatura realista vive de ironias - é um artificio da linguagem para expor as lancinantes contradições da realidade do capital.

Identidades

A abertura de A Caverna é a descrição da identidade de Cipriano Algor e de Marçal Gacho e de seu trajeto cotidiano: a ida de Cipriano e de seu genro ao Centro entregar louças. Logo nas primeiras palavras do romance, Saramago apresenta profissão e idade de Cipriano Algor. É oleiro de profissão e tem sessenta e quatro anos. São os indicadores fundamentais de um homem na sociedade do trabalho.

Na verdade, a profissão e a idade de um homem traduzem sua essência de ser genérico na sociedade do capital. Mas Saramago também fala dos nomes e sobrenomes dos personagens. São seus traços humano-pessoais. Na verdade, os sobrenomes ou apelidos dizem algo da essência do ser dos personagens. Mas eles desconhecem tal significado dos sobrenomes.

Estamos diante quase de um estranhamento primordial, um destino oculto impresso na identidade singular dos personagens: “Como já se terá reparado, tanto um como outro levam colados ao nome próprio uns apelidos insólitos cuja origem, significado e motivo desconhecem.” O desconhecimento do significado do sobrenome é, deste modo, o estranhamento primitivo dos personagens de A Caverna.

Um sobrenome não é meramente um apelido, mas, como já dissemos, quase um destino. Diz Saramago: “...aquele algor significa frio intenso do corpo, prenunciador de febre...”. Ao dizer isto, Saramago já prenuncia, de forma alegórica, o destino de Cipriano, o frio intenso de seu corpo despojado pela modernização do capital: o frio que prenuncia a febre que irá acometer Cipriano no decorrer da narrativa de A Caverna.

O romance de Saramago é um romance febril. Vive-se o delírio de uma modernização avassaladora, que despoja um homem de sua identidade pessoal. Cipriano Algor irá deixar de ser oleiro de profissão. No decorrer de A Caverna ele irá ser despojado, desnudado, exposto à tormenta da modernização, que, com certeza, irá lhe provocar uma febre prenunciada por um frio intenso, de uma nova era glacial, de transição para um mundo global.

O sobrenome de Cipriano contém tais significados e motivos, mas ele os desconhece. Saramago apresenta, do mesmo modo, o genro: Marçal Gacho, casado com sua filha, Marta. Seu sobrenome é tão significativo quanto o de Cipriano – “...o gacho é nada mais nada menos que a parte do pescoço do boi em que se assenta a canga.”. Marçal não possui uma profissão, como Cipriano. É um mero funcionário do Centro, que aguarda, com ansiedade, no decorrer do romance, sua promoção como guarda residente.

Talvez possamos dizer que a canga de Marçal é o próprio Centro, suprema alegoria do mercado que parece determinar o destino dos personagens de A Caverna. Em seu sobrenome, Marçal já traz inscrita sua condição proletária, de trabalho servil, que se expressa em sua indumentária.
Enquanto Cipriano traja um casaco civil, Marçal veste um uniforme - “...mas não está armado”, nos diz Saramago. Deste modo, após tratar da profissão, idade, nome e sobrenome, Saramago trata da indumentária deste personagens, que estão sendo conduzidos, naquela manhã, pela camioneta até o Centro.

Os detalhes de Saramago são expressivos. Após um breve comentário da indumentária, Saramago irá tratar das mãos de seus personagens - das de Cipriano, que maneja o volante, e das mãos de Marçal. As mãos, que, tal como o sobrenome, possuem inscritas em si, significados e motivos, marcas indeléveis de trajetórias de vida. Na verdade, o trabalho imprime nas mãos sua forma de ser.

Diz Saramago, das mãos de Cipriano: “As mãos que manejam o volante são grandes e fortes, de camponês...”. Ora, Cipriano é trabalhador manual e suas mãos expressam tal condição de trabalho. Ele não é um camponês, mas traz nelas a marca de homens que ainda preservam sua pequena propriedade. O camponês, tal como um artesão, são pequenos proprietários, preservando sua habilidade profissional e sua autonomia de trabalho.

Mas as mãos de Cipriano prometem sensibilidade, pois ele é um oficial da argila, que obriga, por conta se seu cotidiano de oleiro, o contacto com a maciez da argila. Ele não lavra lavra a terra. Pelo contrário, ele molda a argila, o que lhe garante uma sensibilidade própria. As tratar das mãos, Saramago sugere que o corpo – e as mãos é uma das partes expressivas do corpo – é parte da subjetividade (e, portanto, da identidade) do homem e da mulher.

Tal como o sobrenome, as mãos contém significados e motivos ocultos. Por exemplo, a cicatriz com aspecto de queimadura nas costas da mão esquerda de Marçal, que Saramago não nos diz como, nem onde surgiram, mas que é parte da história de vida do genro de Cipriano. Enfim, após tratar, em poucas palavras, dos sujeitos humanos e de suas múltiplas identidades, Saramago irá tratar, mais longamente, dos objetos e das suas contingências – da camioneta e da sua carga; do trajeto e da região por onde trafega a furgoneta de Cipriano Algor, até o Centro, carregada de louças rústicas. Estamos apenas começando a narrativa densa de A Caverna.


Trajetos e Territórios

José Saramago é um literato do território. Ele nos descreve, com acuidade, nos primeiros parágrafos de A Caverna, o trajeto da camioneta de Cipriano Algor até o Centro. O trajeto e o território é desvelado linha por linha.

Após tratar das identidades dos personagens, Saramago nos apresenta o território que, tal como nome e sobrenome, profissão e corporalidade viva, não deixam de compor a identidade pessoal de Cipriano, Marçal e Marta. Na verdade, o território que Saramago nos apresenta é traço compositivo do trajeto que Cipriano Algor percorre dia-a-dia. Através dele, desta descrição sucinta, Saramago indica os paradoxos da sociedade do Centro.

Primeiro, ele nos diz: “A região é fosca, suja, não merece que a olhemos duas vezes.” Estamos diante de uma paisagem natural degradada pelo modo de produção (e destruição) capitalista. É curioso que tais “enormes extensões de aparência nada campestre” têm o “nome técnico” de Cintura Agrícola, ou ainda, “por analogia poética”, de Cintura Verde.

A técnica se alia à poesia para tergiversar a realidade. A agricultura e o verde que se apresentam na paisagem são meros produtos “artificiais” da produção industrial. O que observamos, nos dos lados da estrada, são instalações agroindustriais: “...grandes armações de tecto plano, retangulares, feitas de plásticos de uma cor neutra que o tempo e as poeiras, aos poucos, foram desviando ao cinzento e ao pardo.” E Saramago, observa: “Debaixo delas, fora dos olhares de quem passa, crescem plantas.”

Estamos diante de uma interversão de significados: agricultura é indústria e verde é cinzento. E as plantas, tal como os homens, estão recolhidos nas tecnoestruturas urbano-industriais. Perguntemos: ainda são plantas? Apesar disso, a linguagem ainda guarda, por ironia do capital, os nomes de Cintura Agrícola e Cintura Verde.

Ora, a agricultura deixou de ser agricultura, e o verde deixou de ser verde. Através dos primeiros detalhes da paisagem paradoxal da sociedade do Centro, Saramago expõe o estranhamento deste mundo social.

No trajeto observamos não apenas a Cintura Agrícola (ou Cintura Verde), mas logo a seguir, a Cintura Industrial. A estrada, diz-nos Saramago, aparece “agora mais suja”. Diante deles surgem “instalações fabris de todo o tamanho, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos de combustível, estações elétricas, redes de canalizações, condutores de ar, pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns vermelhos, outros pretos, chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas, pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio, ninguém sabe o que se estará produzindo ali.”

É uma descrição contundente, sonora, com odor (e estupor), do mundo industrial. Saramago nos apresenta uma base produtiva vinculada ainda à II Revolução Industrial, da grande industria eletro-mecânica, das indústrias de chaminés, da estações de eletricidade e do combustível de petróleo. Eis o capitalismo da grande indústria, que caracterizou o século XX e que avançou (e ainda avança), com a modernização do capital, sobre territórios e gentes.

Diz Saramago: “...ninguém sabe o que se estará produzindo ali”. Eis a própria representação do trabalho abstrato. Tal como em “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin não sabemos o que se estará produzindo naquelas instalações industriais, com suas linhas de montagem fordista-taylorista. Diante de nós, apenas a máquina do capital.

“Depois da Cintura Industrial principia a cidade...” – diz Saramago. Mas não é a cidade propriamente dita, porque entre esta e a Cintura Industrial, o que se vê “são aglomerações caóticas de barracas feitas de quantos materiais, na sua maioria precários, pudessem ajudar a defender das intempéries, sobretudo da chuva e do frio, os seus mal abrigados moradores.”
Depois da natureza natural degradada, Saramago nos apresenta a natureza social degradada. “É, no dizer dos habitantes da cidade, um lugar assustador”.
Na verdade, Saramago trata, neste momento, de populações pobres, dos bairro dos excluídos, do exercito industrial de reserva, da superpopulação supérflua, sub-homens de uma subnatureza, resíduos irremediáveis da sociedade do capital, excluídos do próprio território da cidade. Percebemos que eles estão entre a indústria e a cidade propriamente dita como espaço de civilização. Vivem, deste modo, como os deuses da Antiguidade, nos intermundia (em latim), ou seja, entre-mundos.

Saramago se detém a tratar da logística dos assaltantes, salteadores de estrada, que, divididos em grupos, provocam armadilhas e limpam os caminhões que se dirigem ao Centro. Vejamos: primeiro, Saramago nos apresenta a Cintura Agrícola; depois, o Cinturão Industrial; logo a seguir, quase como refugo deste, o bairro dos excluídos e depois, uma zona intermediaria, antes de atingirmos a cidade propriamente dita.

É o que nos diz Saramago: “Entre as barracas e os primeiros prédios da cidade, como uma terra-de-ninguém separando duas facções enfrentadas, há um largo espaço despejado de construções...”. O que observamos, neste trecho da descrição, é que Saramago sugere que a modernização industrial avança a todo vapor, através das “redes entrecruzadas de rastos de tratores” que com suas grandes pás mecânicas, “essas implacáveis lâminas curvas”, como diz ele, “sem dó nem piedade, levam tudo por diante, a casa antiga, a raiz nova, o muro que amparava, o lugar de uma sombra que nunca mais voltará a estar.”

Nossos escritor é quase poético, uma poética da modernização do capital, que desmancha tudo que é sólido, “sem dó nem piedade”. A máquina do capital leva tudo, inclusive “o lugar de uma sombra que nunca mais voltará a estar.” É a dor da perda, do estranhamento que percorre a descrição de Saramago.

Neste momento, é claro, certa dor da modernização, quase à la Fernando Pessoa, que tanto lamentou a modernidade devastadora do capitalismo urbano-industrial em Portugal nos primórdios do século XX. Os alisamentos causados por grandes pás mecânicas, com suas implacáveis laminas curvas são, na narrativa de Saramago, a metáfora genial da homogeneização mecânica do capital e de seu movimento de auto-valorização. Mais uma vez, a lógica do trabalho abstrato se imprime no território devassado.

Mas, Saramago vislumbra detalhes de resistências contingentes através de fragmentos-objetos, e talvez memórias e reminiscências, expressão de sobrevivências que nos fazem apreender, na plena descontinuidade diruptiva da modernização do capital, continuidades do velho mundo que nunca mais voltará a estar.

Diz ele, com vigor poético: “No entanto, tal como sucede nas vidas, quando julgávamos que também tinham levado tudo por diante e depois reparamos que afinal nos ficara alguma coisa, igualmente aqui uns fragmentos dispersos, uns farrapos emporcalhados, uns restos de materiais de refugo, umas latas enferrujadas, umas tábuas apodrecidas, um plástico que o vento traz e leva, mostram-nos que este território havia estado ocupado antes pelos bairros de excluídos.”
Assim, são tais objetos, fragmentos dispersos, que nos fazem lembrar daquilo que ocupava antes, o território e que nunca mais voltará a estar. É interessante que, neste momento, Saramago nos dá uma lição de vida quando nos diz que, as vezes, “quando julgávamos que também tinham levado tudo por diante e depois reparamos que afinal nos ficara alguma coisa”.

Ora, a lógica dialética da modernização do capital possui, em si, a lógica da vida (e da morte). Apesar de tudo, apesar daquilo que nunca mais voltará a estar, da fluidez passageira, que leva tudo por diante, de maneira implacável, as vezes reparamos que afinal nos ficara alguma coisa, talvez alguns objetos e, vinculados a eles, memórias e reminiscencias daquilo que havia estado lá e que nunca mais voltará a estar.

Finalmente, podemos dizer que o avanço da máquina-trator, que alisa o território, antes ocupado pelos bairros de excluídos, é expressão do avanço da cidade, símbolo da modernidade do capital. Como sugere Saramago, é quase um destino. Ele nos diz: “Não tardará muito que os edifícios da cidade avancem em linha de atiradores e venham assenhorear-se do terreno, deixando entre os mais adiantados deles e as primeiras barracas apenas uma faixa estreita, uma nova terra-de-ninguém, que assim ficará enquanto não chegar a altura de se passar à terceira fase.”

Coisas, números e homens

Em seu trajeto típico para o Centro, Cipriano Algor divaga sobre a paisagem. Ele vive num mundo social em que, como disse Marx n’O Manifesto Comunista, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Na verdade, o Centro representa a civilização do capital, que avança, destruindo e construindo novas paisagens, refazendo a natureza à sua imagem e semelhança.
O mundo do capital é o mundo do dinheiro e o mundo da mercadoria. Se tivermos que dar um conceito de capital diríamos que capital é esse movimento perpétuo em que dinheiro se interverte em mercadoria e mercadoria se interverte em dinheiro, mais-dinheiro em busca de auto-valorização. Por isso, a perpétua destruição-criação constante, pari pasu ao desenvolvimento do comércio mundial.

Ainda neste primeiro capítulo de “A Caverna”, Cipriano Algor, ao chegar ao Centro, para deixar lá seu genro, Marçal Gacho e entregar seu fornecimento de olaria, se depara com um quarteirão em demolição. É uma passagem interessante porque, mais uma vez, Saramago irá divagar sobre o tema da destruição criativa, ou da destruição dos prédios, um traço recorrente da modernidade do capital.

Não é a toa que a civilização moderna irá imprimir sua marca nos planos urbanísticos sempre criados e recriados. Por um momento, Cipriano está fascinado pelo canteiro de obras daquele quarteirão em demolição. Diz Saramago: “Olhou para os prédios que estavam a ser arrasados”. Talvez aqueles prédios representassem o próprio mundo vital de Cipriano que logo iria ser arrasado pela trágica noticia de que o Centro iria cortar seu fornecimento de olaria.

Diz ele: “Quando daqui a dez dias vier recolher o genro não haverá qualquer vestígio destes prédios, terá assentado a poeira da destruição que agora paira no ar, e poderá até suceder que já esteja a ser escavado o grande fosso onde serão abertos os cavoucos e implantados os fundamentos da nova construção.”

Mas a narrativa de “A caverna” é uma narrativa de destruição/construção de um novo (e velho) mundo social, pois é a partir desta vida ativa, de escavar para construir, que iremos nos deparar, mais adiante, no final do romance, com a caverna e seu significado metafísico.
Naquela manhã Cipriano está divagante. Como ele próprio diz, “distraíra-se com a demolição dos prédios e agora queria recuperar o tempo perdido...”. E divaga sobre a natureza do tempo, ainda impregnado pela dura realidade da modernização avassaladora.

Diz ele: “...nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade, que o tempo que criamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás, esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo,que déssemos pela falta dele.”
Cipriano está na fila de veículos que aguardam a entrega das mercadorias no Centro. Estava em número treze. Embora não fosse pessoa supersticiosa, Cipriano está inquieto com a má reputação deste numeral. Eis um personagem problemático, imerso em contradições íntimas, reflexo de seu tempo de modernização.

Cipriano, mais uma vez, depara-se com problemas metafísicos. O número 13 lhe perturba. Diz Saramago: “Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade...”. E pondera: “...de facto, os números não existem na realidade, às coisas é indiferente o número que lhe dermos, tanto faz dizermos delas que são treze como o quarenta e quatro...”. E logo o oleiro conclui: “As pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares.”

Mas o que Cipriano talvez não saiba é que, embora as pessoas não sejam coisas, as coisas governam o mundo. E as coisas, como os números, não existem na realidade. Aliás, as coisas são indiferentes à realidade das pessoas.

A seguir, Cipriano irá se deparar com o mundo das coisas, o mundo do capital, o fetiche-mor que governa as pessoas. Cipriano Algor será surpreendido e alarmado pela decisão do Centro em adquirir apenas metade de suas mercadorias. É o momento-chave de inflexão da trama narrativa de “A Caverna” (o outro momento-chave de inflexão seria o aparecimento da caverna, próximo do final do romance).

Segundo o subchefe da recepção, “as vendas baixaram muito nas últimas semanas, provavelmente iremos ter de devolver-lhe por falta de escoamento o que está em armazém.”
É a lógica do mercado, indiferente às pessoas que se impõe a cada um de nós. Cipriano pergunta: “...diga-me a quem vou vender a outra metade”. Diz o subchefe: “Isso não é comigo, eu só cumpro as ordens que recebi.” Ao buscar falar com a chefia superior, o Chefe do departamento, encontra a indiferença do atendente: “Não, não vale a pena, ele não o atenderia.”

Estamos diante de uma situação kafkiana. Cipriano não estava mais diante de divagações metafísicas sobre o tempo e os números. Deparava-se diante de um fato social, ou seja, a sua obsolescência como produtor independente, a redundância do produto de seu trabalho como sendo a redundância de si próprio.

Diz ele, apelando para a solidariedade de classe: “Vejam esta situação, um homem traz aqui o produto do seu trabalho, cavou o barro, amassou-o, modelou a louça que lhe encomendaram, cozeu-a no forno, e agora dizem-lhe que só ficam com metade do que fez e que lhe vão devolver o que está no armazém...”.

Eis a lamentação profunda de Cipriano Algor. Ao desvalorizar parte de seu trabalho, o Centro desvaloriza parte do próprio Cipriano. Uma parte de si é alienada e pior – excluída do circuito da valorização. Ele não apenas é explorado, mas tornado obsoleto, como uma coisa qualquer. Mas como ele afirmara antes, “as pessoas não são coisas...”.

Estamos diante, deste modo, de um fenômeno de aguda alienação. Cipriano exclama: “...quero saber se há justiça neste procedimento.” Talvez o que ele não saiba é que a justiça é uma categoria do mundo dos homens, mas o que se trata, neste caso, é do mundo das coisas, do fetiche do mercado, indiferente às pessoas, mas não aos números, pois a calculabilidade da mais-valia é que comanda a lógica da valorização.

Às coisas não é indiferente os números, mas sim às pessoas.Os números indicavam para o Centro que as vendas das mercadorias de Cipriano Algor tinham baixado. Por isso, o Centro cortara metade do fornecimento de louças. O protesto de Cipriano era impotente.

Dentro de si um sentimento de acomodamento: “...as coisas acabarão com certeza por compor-se...”. Entretanto, ele buscava um porquê, tentando contornar as coisas da burocracia, que ninguém sabe porquê. Mas Cipriano buscava uma explicação. Pergunta ele: “Pode dizer-me o que é que fez que as vendas tivessem baixado tanto.” E o subchefe responde: “Acho que foi o aparecimento de umas louças de plástico a imitar o barro, imitam-no tão bem que parecem autênticas, com a vantagem de que pesam muito menos e são muito mais baratas.”
Eis o ponto-de-vista do mercado. Mas Cipriano possui o ponto-de-vista do trabalho, do produtor independente, indignado com a desvalorização de seu produto-mercadoria.

Diz ele: “Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é o barro, é autêntico, é natural. Vá dizer isso aos clientes...”. Mas Cipriano é dissuadido pelo subchefe. Ele ainda não entendera a lógica das coisas do mercado. Na perspectiva do mercado, não existem produtores, mas apenas consumidores-clientes. Cipriano seria incitado a se conformar com sua obsolescência pessoal.

Diz o subchefe do Centro: “...não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora a sua louça só interessará a colecionadores, e esses são cada vez menos.”Este primeiro capítulo de "A Caverna" de José Saramago se conclui com uma constatação amarga de Cipriano, o personagem kafkiano do escritor português, mistura de Joseph K. e Dom Quixote de la Mancha – diz-nos Saramago:
“O oleiro sorriu com tristeza. Não foi o treze, o treze não existe, tivesse eu sido o primeiro a chegar e a sentença seria igual, por agora metade, depois se verá, merda de vida.”

O transtorno de Cipriano ensinara alguma coisa a ele: a sentença do mercado é objetiva, tal como uma realidade indiferente aos números da superstição, não aos números do cálculo do valor. Na verdade, Cipriano se deparara com a realidade da lei do valor.

A Caverna, de José Saramago trata não apenas da perda de identidade sócio-humana de Cipriano Algor, através da precarização e extinção irremediável de seu trabalho, mas da trajetória sinuosa de seu reencontro consigo mesmo através de um fato metafísico: a descoberta da caverna. O significado desta alegoria, sugerida por Saramago, nos remete para além das tragédias impostas pelo processo de modernização do capital.
Giovanni Alves
(2005)

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