Uma leitura sócio-ontológica de "O Pequeno Principe", de Antoine Saint-Exúpery
A leitura da seção XXI do conto O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, nos sugere, por meio de elementos alegóricos, o que poderíamos considerar como sendo uma apresentação dos nexos constitutivos (e mediativos) da sociabilidade plena do mundo dos homens . A categoria central desta ontologia do ser social sugerida por Saint-Exupéry é a categoria do Amor. Nesse momento, o escritor francês torna-se legatório de uma tradição filosófica moderna que coloca o Amor como categoria ontológica da sociabilidade humana.
Por exemplo, é de Ludwig Feuerbach a frase: “Não ser nada e não amar é o mesmo.” Para o filósofo alemão, é o processo de trabalho do Amor (entre o Eu e o Tu) que institui e constitui o ser social. Feuerbach criticava a religião por ser um reflexo fantástico (ou alienado), através da mediação de um ou muitos deuses, das qualidades humanas. Mas ele não pretendia abolir a religião em si, mas sim, sua forma estranhada (FEUERBACH, 1996:150) Feuerbach sugeria, deste modo, uma religião dos homens baseada na relação sentimental, a relação cordial dos homens entre si, sem intermediários, ou seja, uma religião (que era a sua política) baseada no Amor entre o Eu e o Tu, com o amor entre os sexos sendo uma das formas supremas, senão a forma culminante, em que se praticava sua nova religião. É possível dizer que o Amor prefigurava no materialismo de Feuerbach, a forma mistificada da categoria ontológica do Trabalho, desenvolvida, mais tarde, pelo jovem Marx, numa perspectiva histórico-materialista. Na verdade, a dimensão sócio-ontológica do Trabalho estava oculta pelo materialismo vulgar de Feuerbach, que era incapaz de apreender os nexos materiais da atividade prático-sensival da história (com a autogênese do homem se dando através do trabalho) (MARX, 2004:79).
É interessante que em sua fábula “O Pequeno Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry incorpore o Amor como nexo constitutivo do mundo dos homens. É claro que Saint-Exupéry se utiliza de recursos narrativos alegóricos no desenvolvimento narrativo de “O Pequeno Príncipe”. Mas, nesse caso, a forma estética é tão-somente a mediação para expressar os elementos de um processo de Trabalho do Amor (se poderíamos dizer assim).
Na perspectiva lukácsiana, a categoria do Trabalho é a base sócio-ontológica pressuposta da categoria de Reprodução Social (o filosofo marxista húngaro Georg Lukács nos deixou uma obra inacabada – Por Ontologia do Ser Social, cujo objetivo original era elaborar as bases materialistas de uma Ética). Para Lukács, depois de Marx e Engels, o Trabalho é categoria fundante (e fundamental) do ser social (LUKÁCS, 1988:17). Nossa hipótese neste ensaio é que, no conto de Saint-Exupéry, a categoria do Trabalho está pressuposta no ato de cativar, tanto que os elementos constitutivos do laço social, que é profundamente intersubjetivo, são os mesmos que estão pressupostos na categoria ontológica do Trabalho (tempo e valor).
Na verdade, o ato de cativar é a categoria ontológica central da instância sócio-reprodutiva, diria Saint-Exupéry. Através da dissecação do ato de cativar, ele nos apresenta o Amor como laço social primordial, categoria fundante e fundamental da Reprodução Social e inclusive, como base de uma biopolítica existencialista.
Quais seriam esses elementos ontológicos do processo de Trabalho do Amor, sugeridos pelo autor do conto “O Pequeno Príncipe” ? (utilizamos a expressão processo de trabalho do Amor na acepção feuerbachiana, ou seja, como o “cimento constitutivo” dos laços sociais humano-genéricos). Ora, é na seção XXI de seu conto clássico que Saint-Exupéry nos apresenta estes elementos. O objetivo deste ensaio é discriminar tais elementos, expondo seus vínculos intrínsecos com as determinações próprias da categoria do Trabalho, presente na Ontologia do Ser Social, de Georg Lukács. Além disso, em Saint-Exupéry é plenamente perceptível uma critica mordaz, embora contingente, do sócio-metabolismo do capital e da sociedade produtora de mercadoria e seus nexos fetichizados.
1. Amor e Tempo
Em primeiro lugar, para se produzir o Amor é imprescindível cativar, ou seja, “criar laços”. Este é o “gancho” heurístico fundamental utilizado por Saint-Exupéry na Parte XXI. Cativar – e estamos sempre utilizando o verbo cativar, que sugere ação – é a “matéria-prima” do Amor. Nesta perspectiva, o ato de cativar é a própria disposição humano-genérica primordial, pois é ele que irá promover a constituição dos laços sociais e da sociabilidade autêntica.
Entretanto, para se cativar, diz Saint-Exupéry, é imprescindível o elemento do tempo. Ele se refere a tempo de vida e otimum e não propriamente “tempo livre”, no sentido de tempo livre da produção, pois hoje, na sociedade de mercadorias, o “tempo livre” é muitas vezes, tempo de consumo, explicitando-se como a esfera da imersão no fetiche da mercadoria (por exemplo, no tempo livre as pessoas vão aos shoppings centers). Apesar disso, pode-se dizer que ainda podemos conhecer amigos e coisas nos espaços cativos da mercadoria. Eis a lógica contraditória do capital.
Quando a raposa diz: “Por favor...cativa-me”, o Pequeno Príncipe responde: “Eu até gostaria, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.” O principezinho busca descobrir e conhecer amigos e coisas. Mas é a raposa que vai lhe dizer um dos elementos básicos deste processo de conhecimento. Diz ela: “A gente só conhece bem as coisas que cativou. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas não existem lojas de amigos, os homens não têm amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!” Eis uma crítica candente à sociedade das mercadorias.
A mercantilização universal parece ser absoluta, mas não é. A forma-mercadoria não consegue se apropriar totalmente da produção da sociabilidade humano-genérica pressuposta nos laços sociais dilacerados. É claro que o capital e a lógica mercantil esgarçam a verdadeira sociabilidade, fetichizam relações sociais, dessocializam homens e mulheres e, deste modo, os tornam incapazes de produzir aquilo que o principezinho busca: amigos. Entretanto, pode-se dizer que persiste à margem do sócio-metabolismo do capital, a produção de amigos que é intrinsecamente produção social – aliás, produção social sempre convulsionada pela lógica da mercadoria. Talvez isso ocorra porque a produção de amigos ou de laços sociais pressupõe, como nos diz Saint-Exupery, algo que o capital quer obsessivamente para si – o tempo.
O capital é um “sujeito” expropriador do tempo de vida, sempre intervertendo-o em tempo de trabalho. Mesmo o tempo livre nas sociedades mercantis complexas torna-se tempo de consumo de mercadorias e de relações sociais fetichizadas. Portanto, é a estrutura de cotidiano imersa na pseudo-concreticidade, como nos diria Kosik, que torna incapaz que os homens possam ter tempo para conhecer amigos e coisas. E se não têm tempo, não conseguem cativá-las e, portanto, conhecê-las (KOSIK, 1968: 26).
Nesse sentido, o que Saint-Exupéry ressalta é o amor como principio heurístico, de conhecimento do Outro (e, portanto, de si próprio, pois estamos diante de uma relação reflexiva). Para se criar laços sociais e, portanto, para se produzir o amor como sentimento ontológico da sociabilidade autêntica, o tempo de vida é imprescindível. É Marx que diz: “ o tempo é o campo do desenvolvimento humano”. É através dele que o homem desenvolve suas capacidades humano-genéricos, sendo uma delas, a produção do Amor, a elaboração dos laços sociais e o conhecimento de amigos e coisas (MARX, 1985: 33).
Quando Saint-Exupéry fala em cativar, ele quer dizer “construção do laço social”, ou seja, aquele elemento dilacerado pela sociabilidade dessocializadora do capital. O laço social (ou o ato de cativar) é, se podemos dizer assim, um valor estratégico do devir humano dos homens. Deste modo, quando dizemos barbárie social, salientamos a forma societal que dilacerou à exaustão os laços sociais e a capacidade humana de produzi-los. Barbárie social é submergir-se no tempo de trabalho – trabalho no sentido de trabalho estranhado. Tempo de vida que é tempo de trabalho alienado de si e dos outros.
Talvez, ao vislumbramos a multidão, possamos intuir que ali se encontram laços sociais e a sociabilidade em si. Na verdade, a sociedade das multidões é uma sociedade do fetiche, permeada do fetichismo da mercadoria que impregna as relações sociais; não a totalidade de suas relações sociais, é claro, mas a maior parte dela. Como salientamos, a produção de amigos e de sociabilidade como laços sociais não-fetichizados, resiste, como momento não-predominante, à lógica sócio-metabólica do capital.
Quando Saint-Exupéry diz que o tempo é imprescindível, ele quer dizer que precisamos cultivar um atributo indispensável: a paciência. Diz ele: “É preciso ser paciente – respondeu a raposa – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.” É uma sugestão interessante do escritor francês. Ele ressalta o gesto primordial da presença silenciosa e do olhar interessado, mas discreto. Ser paciente, nesse caso, é exercer e provar apenas a presença ou a pura parousia. Não é uma presença indiferente, mas uma presença ativa e insistente.
2. Amor, Linguagem e Ritual
Diz ainda a raposa, a grande sábia do ato de cativar: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentará um pouco mais perto...”. O ato de cativar pressupõe a paciência, mas uma paciência que constrói, através do tempo de vida, sua linguagem. Entretanto, a linguagem da paciência não é a linguagem do falatório, pois ela é fonte de mal-entendidos. Para Saint-Exupéry, a linguagem como falatório está clivada de fetiches e impregnada de obstaculizações da plena comunicação entre os homens. Na verdade, a sociedade do capital é a sociedade do falatório ou como diria Heidegger, falatório do impessoal (man) e do impróprio (uneigentlich), tão criticado pelo. próprio Martin Heidegger em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 1995:56). A sociedade do capital é a sociedade da não-comunicação, pois não há verdadeira comunicação sem a linguagem da paciência, como nos diria Saint-Exupéry. O atributo da paciência sugere uma nova forma de comunicação – a comunicação prático-sensivel, a comunicação do gesto primordial: “...cada dia te sentarás um pouco mais perto...”. Esse simples gesto significaria interesse no Outro, elemento do ato de cativar e de percepção sensível persistente.
Outro detalhe: é interessante observar que a raposa está disponível para o ato de cativar. Este é um pressuposto importante, pois sem a disposição prévia do sujeito, o ato de cultivar não se efetiva. Ela diz sempre: “Por favor...cativa-me!”. Enfim, o outro me cativa porque eu quero ser cativado. Existe, nesse caso, um ato de reciprocidade pleno. É quase que um jogo de espelhos reflexos.
Elementos da Produção do Amor
(Segundo Antoine de Saint-Exupéry)
Ato de Cativar
Tempo de Vida e de Otium
Ritual
Mas o outro elemento da produção do Amor, além do ato de cativar e do tempo como tempo de vida e de otium (paciência e dedicação para o Outro e para si mesmo), é o ritual. É uma observação curiosa. O escritor Antoine de Saint-Exupéry é francês, e o ritual é um tema candente da sociologia francesa (de Durkheim a Boudieu). O ritual, como observam sociólogos e antropólogos franceses, é signo de solidariedade. É expressão da consciência coletiva. Não há sociedade ou laço social sem rituais.
A raposa prossegue explicando o elemento do ritual, indispensável para a produção do Amor (na ótica de Saint-Exupéry, o ato de cativar é seu mero “combustível”). Diz ela: “Teria sido melhor se voltasses à mesma hora.” Nessa observação da raposa, a necessidade da reiteração do tempo de vida novamente está posta. Agora ele se dá através de um ritual não-institucionalizado, mas espontâneo. Prossegue a raposa: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!. Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração...” . E destaca: “É preciso que haja um ritual.”
Ora, o ritual é a disciplina sócio-espacial do tempo. É um elemento ontológico da própria socialidade, pois sua lógica intrínseca é a da regularidade da Natureza. Portanto, o ritual, sua periodização e efetividade sob circunstâncias de expectativa, remete à ordem natural, base do próprio ser social. Mas o que interesse, no caso da ritualização como elemento da produção do Amor, é a construção da expectativa do Outro, da sedimentação de um interesse no tempo e espaço de uma relação social. “É preciso saber a hora de preparar meu coração” – diz a raposa. É preciso construir/elaborar uma “natureza” – um espaço - dentro de mim que seja a expressão da presença virtual do Outro, sujeito-objeto do meu ato de cativar. Enfim, a produção do Amor, tal como o processo de trabalho, pressupõe uma regularidade de gestos da corporalidade viva (o ritual), capaz de promover, a partir de um processo cumulativo, um salto qualitativamente novo na interação entre as pessoas.
No mundo do capital, com sua fluidez persistente e sua dinâmica diruptiva, onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, o que acontece com o tempo, ocorre com o ritual – ele se transforma num ato mecânico, sem conteúdo e sem disposição subjetiva. No ritual do capital não há a “preparação do coração”. Provavelmente, pode-se comprar “ corações preparados” – mensagens, frases feitas e clichês pré-concebidos para expressar um conteúdo vazio de expectativa.
Mas a raposa ainda vai explicar para o principezinho o que é o ritual. Diz ela: “É uma coisa muito esquecida também. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros; uma hora, das outras horas.” Ora, no processo de trabalho do Amor o ritual não é o cotidiano como pseudo-concreticidade. Não existem expectativas no cotidiano fetichizado. Sua regularidade é muda. Sua natureza é mecânica. O ritual do capital equaliza e abstrai, enquanto o verdadeiro ritual, aquele elemento da produção do Amor, singulariza e expressa o concreto em sua múltipla riqueza particular. Na sociedade do fetichismo, o ritual interverte-se, deste modo, em cotidiano como pseudo-concreticidade. Como salientamos, ele nega a singularidade. O que nos cabe perguntar é se é possível o Amor numa sociedade do cotidiano fetichizado.
Tal como a interversão do tempo, a negação do ritual, sua dilaceração formal, abstrata e mecânica, age contra a socialidade humano-genérica. No ritual do capital, o tempo é o tempo quantitativo, das horas do relógio mecânico, ou mais abstrato ainda, o relógio digital. Mas no ritual da socialidade do Amor, o tempo é um tempo qualitativo, tempo de vida que é medido pela percepção de que o Outro se aproxima de mim (como disse a raposa: “ cada dia, te sentarás um pouco mais perto...”).
A medida do tempo de vida é a medida dos laços sociais. Mas no cotidiano da modernidade capitalista, um dia possui 24 horas – um dia é igual ao outro. Mas a partir da lógica dos laços sociais não é assim. Pode-se dizer: ela marcou o encontro às 2 horas da tarde, e já são 13:30 horas. Logo a encontrarei, segundo o tempo quantitativo do capital. Mas embora faltem apenas 30 minutos, sei que ela não gosta de mim. Deste modo, o tempo que me separa dela é infinito.
3. Amor e Necessidade
É interessante que na seção XXI, de “O Pequeno Príncipe”, é a raposa que nos apresenta a sabedoria do Amor. É ela que ensina o Pequeno Príncipe a arte do amor e seus significados (Antoine de Saint-Exupéry nos fala do ato de cativar que pressupomos ser a idéia do Amor, como apresentamos na Introdução). A raposa é caçada pelos homens, mas conhece o processo de produção do Amor, processo de produção dos laços sociais e da própria socialidade que é intrínseca tão-somente ao mundo dos homens. Neste momento, Saint-Exupéry elabora uma crítica de uma forma histórica do mundo dos homens. Aquele mundo em que vive a raposa é o mundo do capital, dividido entre caçadores e caça - a raposa é a caça. Ao tornar-se porta-voz da sabedoria do Amor, a raposa aparece como a alegoria de um homem não-humano. Deste modo, ela pode representar a hoinidade oprimida desumanizada.
No plano alegórico, a raposa dialoga com o principezinho que é seu Outro reverso. É irônico que seja a raposa, que é um animal, que ensina o principezinho o que é o mundo dos homens. Na verdade, ela o faz relembrar o que é o mundo dos homens. A raposa vê nele um amigo. Aliás, para ela, quem não é caçador, deve ser seu amigo (a raposa divide o mundo entre caçadores e caça – se não é caçador, é caça). Por outro lado, poderíamos dizer que o principezinho é a hominidade dominante que se interroga, isto é, que busca a autoconsciência.
Ora, no conto “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, raposa e principezinho talvez sejam alegorias de uma mesma condição humana intervertida numa dupla forma alegórica (raposa e o principezinho). Como salientamos, o principezinho é a hominidade dominante, mas interrogante. Talvez possa representar os intelectuais de classe media. Ou ainda o herói burguês problemático imerso no fetichismo da mercadoria. Por outro lado, no jogo alegórico do conto de Saint-Exupéry, os oprimidos aparecem como animais (a raposinha) que preservam a sabedoria dos laços sociais. A raposinha conhece o invisível para os olhos – que é o essencial. É ela que conhece a sabedoria da produção dos laços sociais e do Amor, ensinando ao principezinho uma ontologia da sociabilidade.
Ele, o Pequeno Príncipe, não sabe o que é cativar e criar laços. Tanto que interroga, surpreso: “Criar laços?”. E a raposa, responde: “Exatamente. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”
O que a raposa nos diz é que laços sociais se criam por meio da constituição de um sistema de necessidades recíprocas. Isto é, existe um nexo ontológico entre sociabilidade e necessidade. É ele que funda a sociedade humana por meio do trabalho social. Marx observou, certa vez, que “a comunidade é a força produtiva primordial”. Foi por meio da cooperação social que o homem se fez homem. É de Lukács a frase clássica: “o homem é um animal que se fez homem através do trabalho’. E diremos mais: o trabalho pressupõe como sistema de determinações reflexivas, cooperação social e necessidade recíproca da presença do Outro, divisão do trabalho e solidariedade, linguagem e comunicação interpessoal.
É na medida em que temos necessidade do Outro (e vice-versa) que constituímos, por meio do ato de cativar, os laços sociais. Deste modo, o que Antoine de Saint-Exupéry nos sugere que é o Amor que funda a sociedade humana. Enfim, o ser social é baseado no sistema de necessidade. Estamos diante de um complexo dialético de determinações da produção da vida social e do Amor como categoria ontológica da produção da interpessoalidade.
4. Amor e Unicidade
O próximo elemento essencial sugerido por Antoine de Saint-Exupéry, por meio da fala da raposa, é a unicidade do Outro. Na medida em que tenho necessidade de ti e tu tens necessidade de mim, constitui-se uma relação social que implica transparência e comunicação plena (não necessariamente por meio da linguagem propriamente dita). Enfim, surge uma singularidade recíproca. Na verdade, os entes singulares e a subjetividade pessoal são constituídos por meio da criação de laços sociais: eis uma conclusão interessante de Saint-Exupéry. O ato de cativar e o processo de criação de laços pessoais dissolvem o fetiche da abstratividade, que caracteriza a forma de ser da interpessoalidade cotidiana.
Na sociedade das mercadorias, uma pessoa é igual a cem mil outras pessoas. A sociedade das multidões se impõe como uma sociedade do individualismo estrutural. A pessoalidade é um dado resistente à lógica do capital e sua abstratividade fundamental. A perda da unicidade, salientada por Walter Benjamin, ao tratar da obra de arte, é apenas a expressão desta perda da pessoalidade primordial, pessoalidade que se dissolve na sociedade de massas (BENJAMIN, 1988: 87).
Saint-Exupéry sugere que na sociedade do capital a criação de laços interpessoais e a produção do Amor, como sugerimos acima, podem ser um nexo de resistência à modernização persistente. A raposa diz: “Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”. Estamos diante de uma perspectiva contingente de resistência pessoal à voracidade da abstratividade mercantil que penetra na esfera das relações sociais, fetichizando relações humanas, dissolvendo a singularidade pessoal e a subjetividade das pessoas.
É interessante que, a seguir, o principezinho identificou a experiência do Amor, exposta pela raposa, com a experiência que ele tinha em seu pequeno mundo, isto é, com a experiência afetiva com uma flor. A raposa falava de laços sociais na ótica dos oprimidos (a raposa era a caça). Entretanto, embora o principezinho não pertencesse ao mundo dos oprimidos, mas sim ao mundo dos opressores, ele ainda preservava uma humanidade dentro de si. Ele não sabia o que era cativar e criar laços, mas reconheceu a seguir, que mantinha, em seu pequeno mundo, uma relação de Amor com uma flor.
A flor é um objeto natural. Na alegoria de Saint-Exupéry, tal como a raposa, ela tende a representar o Outro fetichizado. A flor é o Outro fetichizado do Pequeno Príncipe. Apesar de fetichizado, o Outro preserva sua significação reflexiva. Através dele posso me reconhecer. Diz o Pequeno Príncipe: “Existe uma flor...eu creio que ela me cativou.” Ora, apenas o homem é capaz de dar significado – e valor – a objetos da Natureza.
5. Amor e Valor
O valor, como observou Lukács, é uma produção do devir humano dos homens. Cativar é criar um valor no plano da interpessoalidade. É o ato primordial da Ética e da Moral. Por meio do ato de cativar reproduzimos, quase que diariamente, os laços sociais e os pressupostos ontológicos da Ética e da Moral. É possível dizer que o principezinho representa a possibilidade alegórica da humanidade dilacerada pelo capital, emancipar-se. É um pequeno Príncipe, no sentido que é um Príncipe-criança. O que significa que ainda resta uma esperança. As crianças (e o principezinho é uma criança) conservam, dentro de si, as promessas da emancipação humana do fetichismo social. Talvez em Saint-Exupéry tenhamos a prefiguração das crianças como o “Bom Selvagem” de Rousseau.
O principezinho conseguiu aprender a lição de humanidade da raposa. Mas ele só pode exercitá-la com a flor, o Outro fetichizado que habita seu pequeno mundo. Mas para que o principezinho possa apreender o valor da sua flor, ele precisa estar com as demais rosas. Diz a raposa: “Vai rever as rosas. Assim, compreenderás que a tua é a única no mundo.”
Ora, o que Saint-Exupéry sugere é que a produção do valor é uma produção social. O homem só se singulariza e constitui sua subjetividade complexa por meio da socialização plena. Eis mais uma lição da raposa: a categoria do valor (e o Amor é um valor essencial) é uma categoria social (portanto, relacional). É o que o Pequeno Príncipe vai dizer para as rosas: “Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sóis nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes ninguém. Sóis como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu a tornei minha amiga. Agora ela é única no mundo.” Deste modo, o principezinho, além da flor, conseguiu cativar a raposa. Foi o Pequeno Príncipe que tornou a raposa sua amiga (um gesto de reciprocidade à solicitação do Outro) e, deste modo, ela se tornou para si, única no mundo. Não apenas no mundo das raposas, mas no mundo de homens, animais e coisas.
Prosseguindo, o principezinho diz: “Sóis belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós.” Eis uma afirmação contundente. O Pequeno Príncipe começa a aprender por si só o que é o Amor (a vinculação do Amor com a Morte é uma aprendizagem nova para o principezinho como iremos ver adiante). Primeiro, ele diz: “Sóis belas, mas vazias”. Ora, a beleza no sentido da percepção sensível é necessária, mas insuficiente. É a tradução preliminar de uma frase clássica que iria ser proferida pela raposa: “O essencial é invisível aos olhos.” Este é o segredo da raposa e sua sabedoria do Amor. A raposa diz ainda: “Só se vê bem com o coração”. Com o coração não apenas se vê, mas se conhece (ela disse antes, como já salientamos: “A gente só conhece bem as coisas que cativou”).
Para Saint-Exupéry, a verdadeira Razão é o coração. Aliás, só se cativa com o coração. A Razão do coração muitas vezes é desconhecida pelo próprio coração, como diz o ditado. Entretanto, embora o coração desconheça, ele sabe e faz. É a Razão como mundo da essência, na acepção de Hegel. A Certeza e a Verdade da Razão, elemento da consciência de si, que, como diz o próprio filosofo alemão, “é em si e para si quando e porque é em si e para si para um Outro; quer dizer só é como algo reconhecido.” (HEGEL, 1995:22) Na verdade, a seção XXI de O Pequeno Príncipe equivale à dialética da consciência de si (a dialética do Senhor e do Escravo), exposta por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito.
Logo no inicio da seção XXI, o principezinho diz para a raposa: “Quem és tu? Tu és bem bonita...” Nesse momento, ele está imerso na percepção sensível e não conseguiu apreender a Verdade da Razão da raposa. Ele até poderia dizer, se soubesse deste segredo, apresentado depois pela raposa: “Sois bela, mas vazia.” Entretanto, é importante salientar que a percepção sensível não é desprezível. Foi por meio dela que o principezinho se sentiu atraído pela raposa e desenvolveu todo o diálogo da seção XXI. Ele se sentiu atraído pela raposa, mas só depois iria aprender que o essencial é invisível aos olhos. Na lógica dialética, a contingência – como beleza – não é desprezível, apesar de ser insuficiente.
6. Amor e Morte
Num certo momento, o principezinho – ele e não a raposa – vincula Amor e Morte. Ela nos diz que só sacrificamos a corporalidade viva e nossa singularidade única por uma outra singularidade única: “Não se pode morrer por vós”, diz o principezinho para a multidão de abstratividades fetichizadas. Só o Amor justifica a Morte, diria Saint-Exupéry. É a contradição suprema, pois Amor é vida, isto é, produção de sociabilidade humano-genérica.
Mas o principezinho prossegue, afirmando o que descobriu: “Um passante qualquer sem dúvida pensaria que a minha rosa se parece convosco. Ela sozinha, é, porém, mais importante que todas vós, pois foi ela quem eu roguei. Foi ela quem pus sob a redoma. Foi ela quem abriguei com o pára-vento. Foi nela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes, Já que ela é a minha rosa.”
O principezinho continua descobrindo novos elementos da ontologia social do Amor. Agora ele descobre por si só. E sugere, nessa passagem, a vinculação entre Amor e Trabalho, e, portanto, Valor e Trabalho (uma percepção ontológica inclusive salientada por Georg Lukács em sua “Ontologia do ser Social”). Para que a flor se tornasse única, ela deveria ser uma “construção” sócio-humana, no sentido de ser objeto de trabalho e de investimento humano. Nesse caso, o limite do principezinho é utilizar um objeto-fetiche da Natureza como seu exemplo (a sua Verdade é verdade, mas possui uma incrustação alegórica que o limita). Enfim, o principezinho teve um cuidado (e dedicação) com a flor. Nesse caso, voltamos a encontrar a categoria de tempo, ou seja, tempo de vida como um elemento da produção do Amor como valor primordial. O cuidado exigiu tempo para regar (“...foi ela quem eu reguei”); tempo cristalizado em objetos de proteção (“...Foi ela quem pus sob a redoma...e abriguei com o pára-vento”) e tempo de atenção dedicada, seja na prevenção pessoal nem sempre perfeita – o que é natural, pois as contingências e acasos se impõem (“Foi nela que eu matei as larvas – exceto duas ou três por causa das borboletas”); seja na recepção atenciosa de sua expressão comunicativa, que poderia se dar até mesmo no silêncio (“Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes”).
E logo depois, a raposa observa, talvez satisfeita com o principezinho por ele ter descoberto a Verdade da Razão: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”. Esta é uma afirmação ontológica da mais alta relevância. Ela se vincula com o que já destacamos: a captura do tempo de vida pelo capital compromete a produção do amor como valor primordial da sociabilidade. É um dos elementos da crise de sociabilidade e do próprio sócio-metabolismo da barbárie.
A categoria de tempo, como campo de desenvolvimento humano (como diria Marx) possui um sentido ontológico decisivo na Ontologia do Amor sugerida por Saint-Exupéry. Não apenas no sentido de que precisamos de tempo para conhecer e, portanto, para cativar; como tempo de trabalho, no sentido de trabalho da vida, trabalho vivo, do cuidado, salientado acima. Deste modo, o tempo, em si e para si, é o elemento que agrega valor à construção social (o Amor). Estamos, portanto, no interior, de uma apresentação do processo de Trabalho da sociabilidade primordial.
O principezinho diz para as rosas: “vós não sois nada ainda”. Saint-Exupéry nos diz que elas “ficaram desapontadas”. O que ele pode estar sugerindo é que, a multidão, mesmo fetichizada, sente seu vazio existencial e sua incapacidade de ser significativa. Entretanto, o desapontamento ainda é um afeto de mero desconcerto.
Salientamos acima que, na fábula de Antoine de Saint-Exupéry, a raposa é a representação alegórica invertida da humanidade oprimida. Mas é uma figura ambígua: a raposa é caçada pelos homens, mas também caça as galinhas. O mundo da raposa (a Terra) é dividido entre caçadores e galinhas. É quase uma ordem natural das coisas. É como se os oprimidos tivessem dentro de si a crença do senso comum de que a divisão hierárquica do trabalho, a divisão social entre os que mandem e os que obedecem, é parte da ordem natural do mundo. Ela não imaginava que houvesse outros planetas. Ficou intrigada quando o Pequeno Príncipe disse que vinha de outro planeta e não da Terra. “Num outro planeta?” – perguntou ela. E acreditava que no planeta do Pequeno Príncipe, o que havia eram caçadores, de um lado, e galinhas, do outro. Ela pergunta para o principezinho: “Há caçadores nesse planeta?”. Ele responde: “Não”. E a raposa exclama: “Que bom! E galinhas?”. “Também não”, diz o principezinho. “Nada é perfeito” – suspirou a raposa.
Na verdade, o oprimido carrega dentro de si a ordem social do mundo que lhe oprime. Para a raposa, o mundo perfeito seria um mundo de galinhas. E sem caçadores. Numa certa passagem, a raposa diz: “Os homens têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante.” Logo ao conhecer o pequeno Príncipe, ela imagina que ele seja uma raposa também – ou pelo menos seja da mesma classe. Se não é homem (que caça), então deve gostar de caçar galinhas. Tanto que, logo a seguir pergunta para o principezinho: “Tu procuras galinhas?”. Enfim, a raposa, apesar de sua sabedoria sobre o Amor e a sociabilidade primordial, está imersa em sua facticidade. Não consegue ir além desta estrutura estranhada de mundo social. Esta é a representação alegórica dos oprimidos, ou dos escravos – na dialética de Hegel.
O mundo dos oprimidos é um mundo monótono. É o que diz a raposa para o Pequeno Príncipe: “Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. E isso me incomoda um pouco.” O que incomoda a raposa é a dimensão pseudo-concreta do cotidiano. Ela diz que incomoda “um pouco” – o que significa que a monotonia não subverte seu estilo de vida, obrigando-a, a ir além do estar-aí no mundo. O seu incomodo é decorrente da dimensão fetichizada das relações sociais e do cotidiano abstrato das pessoas: “Todas as galinhas se parecem e todos os homens também”. Na verdade, ela não se incomoda com a divisão hierárquica entre caçadores e caçados. O que a raposa não percebe, pois está imersa na consciência contingente, é que a instituição da divisão do trabalho, que produz a ordem de caçadores e de caçados, e a monotonia de uma estrutura de classes, de uma ordem funcional (e mecânica), pois nada poderia surpreender no mundo da natureza, com suas leis férreas, é que produz a abstratividade das pessoas.
Contra o fetichismo do cotidiano, a raposa, imersa na consciência contingente, não poderia sugerir a subversão da ordem natural do mundo, tendo em vista que a fábula e sua forma alegórica constituíram o personagem com seus limites intrínsecos. Numa fábula, uma raposa é apenas uma raposa, quando poderia ser um homem emancipado da ordem do capital. A estrutura estética da fábula não permitiria a interversão dialética, o que poderia ocorrer, por exemplo, nos contos de fadas, quando beijado, o sapo se transforma, num passe de mágica, um príncipe encantado.
Deste modo, a raposa é a representação da consciência contingente dos oprimidos, que estão imersos na monotonia e no incomodo. Apesar disso, é um personagem capaz de expressar a sabedoria da sociabilidade primordial. É a raposa que ensina o que é o Amor para o Pequeno Príncipe. E não apenas isso – na perspectiva de Saint-Exupéry, o ato de cativar e a produção do Amor é um ato subversivo, capaz de instituir a sociabilidade plena no interior da ordem do capital. O que significa que Saint-Exupéry admite a possibilidade de uma ordem dual; de locis de vida significativa e de pessoas emancipadas da abstratividade do fetichismo das mercadorias. “Então será maravilhoso quando me tiveres cativado” – diz a raposa. Ou ainda: “..se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol”.
7. A biopolítica do Amor
O que nos resta perguntar é se é possível uma vida plena de sentido no interior da ordem do capital. Para Saint-Exupéry e sua fábula, apenas o Amor permite constituir os nexos orgânicos de um sócio-metabolismo alternativo à ordem do capital. O Amor no sentido de uma amizade plena é um sentimento desconhecido ou “algo quase sempre esquecido” na sociedade produtora de mercadorias (Adorno e Horkheimer observaram que “toda reificação é esquecimento”) (ADORNO E HORKHEIMER, 1985:78). O Amor como práxis prático-sensível de interação social com o Outro, na ótica de Saint-Exupéry, poderia ser um elemento compositivo de uma nova moral (e uma nova ética) como pressuposto de uma emancipação para além da ordem do capital.
Nesta seção XXI de O Pequeno Príncipe, apreendemos os elementos de uma proposta política de novo tipo. Saint-Exupéry sugere em 1942 uma biopolítica, uma política sócio-metabólica, limitada por pertencer ainda à ordem da cotidianidade. Mas é do cotidiano e na perspectiva dele, que se pode constituir as forças existenciais para a emancipação humana. Antes de Herbert Marcuse e da contracultura, Saint-Exupéry constatou que o Amor, não no sentido instrumental ou pueril da ilusão romântica, como disseminado pela ordem burguesa, seria subversivo à lógica do capital. Entretanto, teria Saint-Exupéry apreendido os limites desta biopolítica do Amor no interior da ordem do capital?
A sabedoria do Amor é transmitida pela raposa, a representação alegórica dos oprimidos imersos na sua contingência cotidiana. É sua imersão contingente no cotidiano que a coloca diante da tragédia. Na verdade, existe uma tragédia na seção XXI de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. A raposa possui uma sabedoria da tragédia. Ela sabe que chegara a “hora da partida” daquele que a cativou. Isto é, a presença do Amor é precária. Diz a raposa: “Ah! Eu vou chorar!”. Ora, a presença do Amor é fluída na ordem do capital. Esta é a tragédia de uma sabedoria – a sabedoria do Amor. Diante do desalento, mas não desencanto, da raposa, o principezinho diz: “A culpa é tua. Eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...”. E a raposa diz: “Quis”. “Mas tu vais chorar!” – disse o principezinho. “Vou”, disse a raposa. E o Pequeno Príncipe arremata: “Então, não terás ganho nada!”. “Terei, sim, por causa da cor do trigo.”, disse a raposa.
8. A Tragédia do Amor
Eis a última lição da raposa para o Pequeno Príncipe. Estamos num segundo momento da exposição da seção XXI do conto de Saint-Exupéry. É o momento da tragédia, o que significa que existe um ato de catarse. A impossibilidade da realização plena do Amor e de seu sócio-metabolismo é uma tragédia na ordem pessoal e da subjetividade estranhada. Como tragédia, subsiste uma aprendizagem existencial que ainda permanece na ordem da contingência. A raposa disse: “Terei, sim, por causa da cor do trigo”.
Certa vez, a raposa disse para o principezinho: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado, O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.
O que tal passagem sugere é que o Amor é capaz de re-significar as coisas do cotidiano. Ele dá vida à natureza morta. Como o próprio ato teleológico do trabalho, é capaz de dar vida aos mortos, como observou certa vez Marx. É provável que o Amor, expresso pela sabedoria da raposa, o ato de cativar, seja a expressão, no plano do sentimento, da atividade do trabalho como categoria ontológica fundante e fundamental do ser social.
“Os campos de trigo não me lembram coisa alguma”, disse a raposa. “Eu não como pão” – afirmou ela (é o mesmo que o principezinho disse para as rosas – “vós não sois nada ainda”). Ora, como salientamos acima, apenas o trabalho – e o Amor – são capazes de criar valor (que é fonte do dever-ser). Mas o trigo, para a raposa – diferentemente das rosas, para o principezinho - iria adquirir valor através da reminiscência do Outro, o único capaz de ser fonte do Amor. Foi a reminiscência do principezinho, com seus cabelos dourados, que constituiu na subjetividade da raposa um significado para o trigo. O trigo passou a valer alguma coisa. Antes, o trigo para a raposa, não valia nada. Foi através da mediação do principezinho, que cativou a raposa, que o trigo adquiriu vida: “O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.
É apenas através do Outro, ou como diria Hegel, de outra consciência de si, que a natureza adquire um significado de vida e atributos como a beleza (o que significa que o Belo – e porque não, o Bem – objeto da Estética e da Ética, respectivamente, possuem um lastro societário profundo, pois são atributos sempre mediados pela relação social com o Outro). Será o principezinho que constituirá o amor da raposa pelo “barulho do vento no trigo”. É o ato de amor mediado pela Natureza. Aliás, o ato de cativar não apenas dá uma significação ao Outro, mas à Natureza morta que o cerca. Isto é, uma significação através da reminiscência e da memória.
Mas existe uma diferença crucial na relação mediativa do Amor entre a raposa e o principezinho. O trigo é o elemento mediativo da reminiscência da raposa, cativada pelo principezinho como consciência de si (diríamos no sentido hegeliano, a consciência de si duplicada). Por outro lado, as rosas é o elemento mediativo da reminiscência do principezinho, “cativado” pela flor. Ou seja: a raposa foi cativada pelo Pequeno Príncipe, que possui, no plano alegórico da fábula de Saint-Exupéry, uma representação antropomórfica. Pelo menos no plano da forma, a raposa é cativada e constituiu sua relação de Amor, por uma representação humana. Com o Pequeno Príncipe ocorre o contrário. Ele é cativado pela flor, uma representação natural-fetichizada do Outro humano-genérico. Esse detalhe talvez expresse sua imersão no mundo fetichizado e a solidão profunda do principezinho como representação da burguesia esclarecida.
É interessante que a construção do personagem do principezinho é complexa, remetendo a uma figura aristocrática, símbolo do Poder como expressão da relação primordial do Capital. Como já discutimos, a sua representação como criança e seu diminutivo (principezinho), sugere uma espaço de imaginação e de negação do principio de realidade (o pequeno príncipe ainda poderia almejar a ser feliz, apesar de ser Príncipe e cair na solidão do Poder).
A título de Conclusão
Aos 31 de julho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry, aviador, poeta e escritor, mas acima de tudo, um humanista, desaparece ao realizar sua oitava missão de reconhecimento sobre a França. Seu pequeno conto “O Pequeno Principe” possui um importante valor intelectual-moral. Saint-Exupéry só escreveu aquilo que viveu, mas não no sentido autobiográfico. Por meio de alegorias, ele apreendeu o sentido da emancipação humana na época da barbárie social. Vivia-se a Segunda Guerra Mundial e seu conto expressa as angústias e esperanças de um homem, que vive as “trevas do seu tempo”.
O “Pequeno Príncipe” foi traduzido para mais de oitenta línguas e dialetos e da qual já foram publicados mais de oito milhões de exemplares. Saint-Exupery recomendou: “leiam de maneira séria”; e lendo este livro seriamente se compreenderá o desespero de seu autor: o mundo está passando por um momento difícil e sério, a Europa em guerra, o avanço do nazismo, a França ocupada, os seus cidadãos reféns, e para ele o pior de tudo: os franceses no exílio estão divididos, cada homem imerso em seu poço de desespero. É preciso recuperar o sentido do ser social no sentido do ser humano-genérico. O que significa que nos tempos de barbárie social é imperativo tocar o coração dos homens, enfim, é preciso libertar o homem da escravidão do mundo fetichizado que nos faz esquecer os valores fundantes e fundamentais da sociabilidade. É necessário trazer o homem para o centro de seu universo.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, M. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Volume II. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
HEGEL, Georg W. F. A Fenomenologia do Espírito. Volume I. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Vozes, 1968.
LUKÁCS, Georg. Per una Ontologia Del Essere Sociale. Volume II. Roma: Editori Riuniti, 1988.
MARX, Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Marx. Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Hucitec, 1985.
A leitura da seção XXI do conto O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, nos sugere, por meio de elementos alegóricos, o que poderíamos considerar como sendo uma apresentação dos nexos constitutivos (e mediativos) da sociabilidade plena do mundo dos homens . A categoria central desta ontologia do ser social sugerida por Saint-Exupéry é a categoria do Amor. Nesse momento, o escritor francês torna-se legatório de uma tradição filosófica moderna que coloca o Amor como categoria ontológica da sociabilidade humana.
Por exemplo, é de Ludwig Feuerbach a frase: “Não ser nada e não amar é o mesmo.” Para o filósofo alemão, é o processo de trabalho do Amor (entre o Eu e o Tu) que institui e constitui o ser social. Feuerbach criticava a religião por ser um reflexo fantástico (ou alienado), através da mediação de um ou muitos deuses, das qualidades humanas. Mas ele não pretendia abolir a religião em si, mas sim, sua forma estranhada (FEUERBACH, 1996:150) Feuerbach sugeria, deste modo, uma religião dos homens baseada na relação sentimental, a relação cordial dos homens entre si, sem intermediários, ou seja, uma religião (que era a sua política) baseada no Amor entre o Eu e o Tu, com o amor entre os sexos sendo uma das formas supremas, senão a forma culminante, em que se praticava sua nova religião. É possível dizer que o Amor prefigurava no materialismo de Feuerbach, a forma mistificada da categoria ontológica do Trabalho, desenvolvida, mais tarde, pelo jovem Marx, numa perspectiva histórico-materialista. Na verdade, a dimensão sócio-ontológica do Trabalho estava oculta pelo materialismo vulgar de Feuerbach, que era incapaz de apreender os nexos materiais da atividade prático-sensival da história (com a autogênese do homem se dando através do trabalho) (MARX, 2004:79).
É interessante que em sua fábula “O Pequeno Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry incorpore o Amor como nexo constitutivo do mundo dos homens. É claro que Saint-Exupéry se utiliza de recursos narrativos alegóricos no desenvolvimento narrativo de “O Pequeno Príncipe”. Mas, nesse caso, a forma estética é tão-somente a mediação para expressar os elementos de um processo de Trabalho do Amor (se poderíamos dizer assim).
Na perspectiva lukácsiana, a categoria do Trabalho é a base sócio-ontológica pressuposta da categoria de Reprodução Social (o filosofo marxista húngaro Georg Lukács nos deixou uma obra inacabada – Por Ontologia do Ser Social, cujo objetivo original era elaborar as bases materialistas de uma Ética). Para Lukács, depois de Marx e Engels, o Trabalho é categoria fundante (e fundamental) do ser social (LUKÁCS, 1988:17). Nossa hipótese neste ensaio é que, no conto de Saint-Exupéry, a categoria do Trabalho está pressuposta no ato de cativar, tanto que os elementos constitutivos do laço social, que é profundamente intersubjetivo, são os mesmos que estão pressupostos na categoria ontológica do Trabalho (tempo e valor).
Na verdade, o ato de cativar é a categoria ontológica central da instância sócio-reprodutiva, diria Saint-Exupéry. Através da dissecação do ato de cativar, ele nos apresenta o Amor como laço social primordial, categoria fundante e fundamental da Reprodução Social e inclusive, como base de uma biopolítica existencialista.
Quais seriam esses elementos ontológicos do processo de Trabalho do Amor, sugeridos pelo autor do conto “O Pequeno Príncipe” ? (utilizamos a expressão processo de trabalho do Amor na acepção feuerbachiana, ou seja, como o “cimento constitutivo” dos laços sociais humano-genéricos). Ora, é na seção XXI de seu conto clássico que Saint-Exupéry nos apresenta estes elementos. O objetivo deste ensaio é discriminar tais elementos, expondo seus vínculos intrínsecos com as determinações próprias da categoria do Trabalho, presente na Ontologia do Ser Social, de Georg Lukács. Além disso, em Saint-Exupéry é plenamente perceptível uma critica mordaz, embora contingente, do sócio-metabolismo do capital e da sociedade produtora de mercadoria e seus nexos fetichizados.
1. Amor e Tempo
Em primeiro lugar, para se produzir o Amor é imprescindível cativar, ou seja, “criar laços”. Este é o “gancho” heurístico fundamental utilizado por Saint-Exupéry na Parte XXI. Cativar – e estamos sempre utilizando o verbo cativar, que sugere ação – é a “matéria-prima” do Amor. Nesta perspectiva, o ato de cativar é a própria disposição humano-genérica primordial, pois é ele que irá promover a constituição dos laços sociais e da sociabilidade autêntica.
Entretanto, para se cativar, diz Saint-Exupéry, é imprescindível o elemento do tempo. Ele se refere a tempo de vida e otimum e não propriamente “tempo livre”, no sentido de tempo livre da produção, pois hoje, na sociedade de mercadorias, o “tempo livre” é muitas vezes, tempo de consumo, explicitando-se como a esfera da imersão no fetiche da mercadoria (por exemplo, no tempo livre as pessoas vão aos shoppings centers). Apesar disso, pode-se dizer que ainda podemos conhecer amigos e coisas nos espaços cativos da mercadoria. Eis a lógica contraditória do capital.
Quando a raposa diz: “Por favor...cativa-me”, o Pequeno Príncipe responde: “Eu até gostaria, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.” O principezinho busca descobrir e conhecer amigos e coisas. Mas é a raposa que vai lhe dizer um dos elementos básicos deste processo de conhecimento. Diz ela: “A gente só conhece bem as coisas que cativou. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas não existem lojas de amigos, os homens não têm amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!” Eis uma crítica candente à sociedade das mercadorias.
A mercantilização universal parece ser absoluta, mas não é. A forma-mercadoria não consegue se apropriar totalmente da produção da sociabilidade humano-genérica pressuposta nos laços sociais dilacerados. É claro que o capital e a lógica mercantil esgarçam a verdadeira sociabilidade, fetichizam relações sociais, dessocializam homens e mulheres e, deste modo, os tornam incapazes de produzir aquilo que o principezinho busca: amigos. Entretanto, pode-se dizer que persiste à margem do sócio-metabolismo do capital, a produção de amigos que é intrinsecamente produção social – aliás, produção social sempre convulsionada pela lógica da mercadoria. Talvez isso ocorra porque a produção de amigos ou de laços sociais pressupõe, como nos diz Saint-Exupery, algo que o capital quer obsessivamente para si – o tempo.
O capital é um “sujeito” expropriador do tempo de vida, sempre intervertendo-o em tempo de trabalho. Mesmo o tempo livre nas sociedades mercantis complexas torna-se tempo de consumo de mercadorias e de relações sociais fetichizadas. Portanto, é a estrutura de cotidiano imersa na pseudo-concreticidade, como nos diria Kosik, que torna incapaz que os homens possam ter tempo para conhecer amigos e coisas. E se não têm tempo, não conseguem cativá-las e, portanto, conhecê-las (KOSIK, 1968: 26).
Nesse sentido, o que Saint-Exupéry ressalta é o amor como principio heurístico, de conhecimento do Outro (e, portanto, de si próprio, pois estamos diante de uma relação reflexiva). Para se criar laços sociais e, portanto, para se produzir o amor como sentimento ontológico da sociabilidade autêntica, o tempo de vida é imprescindível. É Marx que diz: “ o tempo é o campo do desenvolvimento humano”. É através dele que o homem desenvolve suas capacidades humano-genéricos, sendo uma delas, a produção do Amor, a elaboração dos laços sociais e o conhecimento de amigos e coisas (MARX, 1985: 33).
Quando Saint-Exupéry fala em cativar, ele quer dizer “construção do laço social”, ou seja, aquele elemento dilacerado pela sociabilidade dessocializadora do capital. O laço social (ou o ato de cativar) é, se podemos dizer assim, um valor estratégico do devir humano dos homens. Deste modo, quando dizemos barbárie social, salientamos a forma societal que dilacerou à exaustão os laços sociais e a capacidade humana de produzi-los. Barbárie social é submergir-se no tempo de trabalho – trabalho no sentido de trabalho estranhado. Tempo de vida que é tempo de trabalho alienado de si e dos outros.
Talvez, ao vislumbramos a multidão, possamos intuir que ali se encontram laços sociais e a sociabilidade em si. Na verdade, a sociedade das multidões é uma sociedade do fetiche, permeada do fetichismo da mercadoria que impregna as relações sociais; não a totalidade de suas relações sociais, é claro, mas a maior parte dela. Como salientamos, a produção de amigos e de sociabilidade como laços sociais não-fetichizados, resiste, como momento não-predominante, à lógica sócio-metabólica do capital.
Quando Saint-Exupéry diz que o tempo é imprescindível, ele quer dizer que precisamos cultivar um atributo indispensável: a paciência. Diz ele: “É preciso ser paciente – respondeu a raposa – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.” É uma sugestão interessante do escritor francês. Ele ressalta o gesto primordial da presença silenciosa e do olhar interessado, mas discreto. Ser paciente, nesse caso, é exercer e provar apenas a presença ou a pura parousia. Não é uma presença indiferente, mas uma presença ativa e insistente.
2. Amor, Linguagem e Ritual
Diz ainda a raposa, a grande sábia do ato de cativar: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentará um pouco mais perto...”. O ato de cativar pressupõe a paciência, mas uma paciência que constrói, através do tempo de vida, sua linguagem. Entretanto, a linguagem da paciência não é a linguagem do falatório, pois ela é fonte de mal-entendidos. Para Saint-Exupéry, a linguagem como falatório está clivada de fetiches e impregnada de obstaculizações da plena comunicação entre os homens. Na verdade, a sociedade do capital é a sociedade do falatório ou como diria Heidegger, falatório do impessoal (man) e do impróprio (uneigentlich), tão criticado pelo. próprio Martin Heidegger em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 1995:56). A sociedade do capital é a sociedade da não-comunicação, pois não há verdadeira comunicação sem a linguagem da paciência, como nos diria Saint-Exupéry. O atributo da paciência sugere uma nova forma de comunicação – a comunicação prático-sensivel, a comunicação do gesto primordial: “...cada dia te sentarás um pouco mais perto...”. Esse simples gesto significaria interesse no Outro, elemento do ato de cativar e de percepção sensível persistente.
Outro detalhe: é interessante observar que a raposa está disponível para o ato de cativar. Este é um pressuposto importante, pois sem a disposição prévia do sujeito, o ato de cultivar não se efetiva. Ela diz sempre: “Por favor...cativa-me!”. Enfim, o outro me cativa porque eu quero ser cativado. Existe, nesse caso, um ato de reciprocidade pleno. É quase que um jogo de espelhos reflexos.
Elementos da Produção do Amor
(Segundo Antoine de Saint-Exupéry)
Ato de Cativar
Tempo de Vida e de Otium
Ritual
Mas o outro elemento da produção do Amor, além do ato de cativar e do tempo como tempo de vida e de otium (paciência e dedicação para o Outro e para si mesmo), é o ritual. É uma observação curiosa. O escritor Antoine de Saint-Exupéry é francês, e o ritual é um tema candente da sociologia francesa (de Durkheim a Boudieu). O ritual, como observam sociólogos e antropólogos franceses, é signo de solidariedade. É expressão da consciência coletiva. Não há sociedade ou laço social sem rituais.
A raposa prossegue explicando o elemento do ritual, indispensável para a produção do Amor (na ótica de Saint-Exupéry, o ato de cativar é seu mero “combustível”). Diz ela: “Teria sido melhor se voltasses à mesma hora.” Nessa observação da raposa, a necessidade da reiteração do tempo de vida novamente está posta. Agora ele se dá através de um ritual não-institucionalizado, mas espontâneo. Prossegue a raposa: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!. Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração...” . E destaca: “É preciso que haja um ritual.”
Ora, o ritual é a disciplina sócio-espacial do tempo. É um elemento ontológico da própria socialidade, pois sua lógica intrínseca é a da regularidade da Natureza. Portanto, o ritual, sua periodização e efetividade sob circunstâncias de expectativa, remete à ordem natural, base do próprio ser social. Mas o que interesse, no caso da ritualização como elemento da produção do Amor, é a construção da expectativa do Outro, da sedimentação de um interesse no tempo e espaço de uma relação social. “É preciso saber a hora de preparar meu coração” – diz a raposa. É preciso construir/elaborar uma “natureza” – um espaço - dentro de mim que seja a expressão da presença virtual do Outro, sujeito-objeto do meu ato de cativar. Enfim, a produção do Amor, tal como o processo de trabalho, pressupõe uma regularidade de gestos da corporalidade viva (o ritual), capaz de promover, a partir de um processo cumulativo, um salto qualitativamente novo na interação entre as pessoas.
No mundo do capital, com sua fluidez persistente e sua dinâmica diruptiva, onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, o que acontece com o tempo, ocorre com o ritual – ele se transforma num ato mecânico, sem conteúdo e sem disposição subjetiva. No ritual do capital não há a “preparação do coração”. Provavelmente, pode-se comprar “ corações preparados” – mensagens, frases feitas e clichês pré-concebidos para expressar um conteúdo vazio de expectativa.
Mas a raposa ainda vai explicar para o principezinho o que é o ritual. Diz ela: “É uma coisa muito esquecida também. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros; uma hora, das outras horas.” Ora, no processo de trabalho do Amor o ritual não é o cotidiano como pseudo-concreticidade. Não existem expectativas no cotidiano fetichizado. Sua regularidade é muda. Sua natureza é mecânica. O ritual do capital equaliza e abstrai, enquanto o verdadeiro ritual, aquele elemento da produção do Amor, singulariza e expressa o concreto em sua múltipla riqueza particular. Na sociedade do fetichismo, o ritual interverte-se, deste modo, em cotidiano como pseudo-concreticidade. Como salientamos, ele nega a singularidade. O que nos cabe perguntar é se é possível o Amor numa sociedade do cotidiano fetichizado.
Tal como a interversão do tempo, a negação do ritual, sua dilaceração formal, abstrata e mecânica, age contra a socialidade humano-genérica. No ritual do capital, o tempo é o tempo quantitativo, das horas do relógio mecânico, ou mais abstrato ainda, o relógio digital. Mas no ritual da socialidade do Amor, o tempo é um tempo qualitativo, tempo de vida que é medido pela percepção de que o Outro se aproxima de mim (como disse a raposa: “ cada dia, te sentarás um pouco mais perto...”).
A medida do tempo de vida é a medida dos laços sociais. Mas no cotidiano da modernidade capitalista, um dia possui 24 horas – um dia é igual ao outro. Mas a partir da lógica dos laços sociais não é assim. Pode-se dizer: ela marcou o encontro às 2 horas da tarde, e já são 13:30 horas. Logo a encontrarei, segundo o tempo quantitativo do capital. Mas embora faltem apenas 30 minutos, sei que ela não gosta de mim. Deste modo, o tempo que me separa dela é infinito.
3. Amor e Necessidade
É interessante que na seção XXI, de “O Pequeno Príncipe”, é a raposa que nos apresenta a sabedoria do Amor. É ela que ensina o Pequeno Príncipe a arte do amor e seus significados (Antoine de Saint-Exupéry nos fala do ato de cativar que pressupomos ser a idéia do Amor, como apresentamos na Introdução). A raposa é caçada pelos homens, mas conhece o processo de produção do Amor, processo de produção dos laços sociais e da própria socialidade que é intrínseca tão-somente ao mundo dos homens. Neste momento, Saint-Exupéry elabora uma crítica de uma forma histórica do mundo dos homens. Aquele mundo em que vive a raposa é o mundo do capital, dividido entre caçadores e caça - a raposa é a caça. Ao tornar-se porta-voz da sabedoria do Amor, a raposa aparece como a alegoria de um homem não-humano. Deste modo, ela pode representar a hoinidade oprimida desumanizada.
No plano alegórico, a raposa dialoga com o principezinho que é seu Outro reverso. É irônico que seja a raposa, que é um animal, que ensina o principezinho o que é o mundo dos homens. Na verdade, ela o faz relembrar o que é o mundo dos homens. A raposa vê nele um amigo. Aliás, para ela, quem não é caçador, deve ser seu amigo (a raposa divide o mundo entre caçadores e caça – se não é caçador, é caça). Por outro lado, poderíamos dizer que o principezinho é a hominidade dominante que se interroga, isto é, que busca a autoconsciência.
Ora, no conto “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, raposa e principezinho talvez sejam alegorias de uma mesma condição humana intervertida numa dupla forma alegórica (raposa e o principezinho). Como salientamos, o principezinho é a hominidade dominante, mas interrogante. Talvez possa representar os intelectuais de classe media. Ou ainda o herói burguês problemático imerso no fetichismo da mercadoria. Por outro lado, no jogo alegórico do conto de Saint-Exupéry, os oprimidos aparecem como animais (a raposinha) que preservam a sabedoria dos laços sociais. A raposinha conhece o invisível para os olhos – que é o essencial. É ela que conhece a sabedoria da produção dos laços sociais e do Amor, ensinando ao principezinho uma ontologia da sociabilidade.
Ele, o Pequeno Príncipe, não sabe o que é cativar e criar laços. Tanto que interroga, surpreso: “Criar laços?”. E a raposa, responde: “Exatamente. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”
O que a raposa nos diz é que laços sociais se criam por meio da constituição de um sistema de necessidades recíprocas. Isto é, existe um nexo ontológico entre sociabilidade e necessidade. É ele que funda a sociedade humana por meio do trabalho social. Marx observou, certa vez, que “a comunidade é a força produtiva primordial”. Foi por meio da cooperação social que o homem se fez homem. É de Lukács a frase clássica: “o homem é um animal que se fez homem através do trabalho’. E diremos mais: o trabalho pressupõe como sistema de determinações reflexivas, cooperação social e necessidade recíproca da presença do Outro, divisão do trabalho e solidariedade, linguagem e comunicação interpessoal.
É na medida em que temos necessidade do Outro (e vice-versa) que constituímos, por meio do ato de cativar, os laços sociais. Deste modo, o que Antoine de Saint-Exupéry nos sugere que é o Amor que funda a sociedade humana. Enfim, o ser social é baseado no sistema de necessidade. Estamos diante de um complexo dialético de determinações da produção da vida social e do Amor como categoria ontológica da produção da interpessoalidade.
4. Amor e Unicidade
O próximo elemento essencial sugerido por Antoine de Saint-Exupéry, por meio da fala da raposa, é a unicidade do Outro. Na medida em que tenho necessidade de ti e tu tens necessidade de mim, constitui-se uma relação social que implica transparência e comunicação plena (não necessariamente por meio da linguagem propriamente dita). Enfim, surge uma singularidade recíproca. Na verdade, os entes singulares e a subjetividade pessoal são constituídos por meio da criação de laços sociais: eis uma conclusão interessante de Saint-Exupéry. O ato de cativar e o processo de criação de laços pessoais dissolvem o fetiche da abstratividade, que caracteriza a forma de ser da interpessoalidade cotidiana.
Na sociedade das mercadorias, uma pessoa é igual a cem mil outras pessoas. A sociedade das multidões se impõe como uma sociedade do individualismo estrutural. A pessoalidade é um dado resistente à lógica do capital e sua abstratividade fundamental. A perda da unicidade, salientada por Walter Benjamin, ao tratar da obra de arte, é apenas a expressão desta perda da pessoalidade primordial, pessoalidade que se dissolve na sociedade de massas (BENJAMIN, 1988: 87).
Saint-Exupéry sugere que na sociedade do capital a criação de laços interpessoais e a produção do Amor, como sugerimos acima, podem ser um nexo de resistência à modernização persistente. A raposa diz: “Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”. Estamos diante de uma perspectiva contingente de resistência pessoal à voracidade da abstratividade mercantil que penetra na esfera das relações sociais, fetichizando relações humanas, dissolvendo a singularidade pessoal e a subjetividade das pessoas.
É interessante que, a seguir, o principezinho identificou a experiência do Amor, exposta pela raposa, com a experiência que ele tinha em seu pequeno mundo, isto é, com a experiência afetiva com uma flor. A raposa falava de laços sociais na ótica dos oprimidos (a raposa era a caça). Entretanto, embora o principezinho não pertencesse ao mundo dos oprimidos, mas sim ao mundo dos opressores, ele ainda preservava uma humanidade dentro de si. Ele não sabia o que era cativar e criar laços, mas reconheceu a seguir, que mantinha, em seu pequeno mundo, uma relação de Amor com uma flor.
A flor é um objeto natural. Na alegoria de Saint-Exupéry, tal como a raposa, ela tende a representar o Outro fetichizado. A flor é o Outro fetichizado do Pequeno Príncipe. Apesar de fetichizado, o Outro preserva sua significação reflexiva. Através dele posso me reconhecer. Diz o Pequeno Príncipe: “Existe uma flor...eu creio que ela me cativou.” Ora, apenas o homem é capaz de dar significado – e valor – a objetos da Natureza.
5. Amor e Valor
O valor, como observou Lukács, é uma produção do devir humano dos homens. Cativar é criar um valor no plano da interpessoalidade. É o ato primordial da Ética e da Moral. Por meio do ato de cativar reproduzimos, quase que diariamente, os laços sociais e os pressupostos ontológicos da Ética e da Moral. É possível dizer que o principezinho representa a possibilidade alegórica da humanidade dilacerada pelo capital, emancipar-se. É um pequeno Príncipe, no sentido que é um Príncipe-criança. O que significa que ainda resta uma esperança. As crianças (e o principezinho é uma criança) conservam, dentro de si, as promessas da emancipação humana do fetichismo social. Talvez em Saint-Exupéry tenhamos a prefiguração das crianças como o “Bom Selvagem” de Rousseau.
O principezinho conseguiu aprender a lição de humanidade da raposa. Mas ele só pode exercitá-la com a flor, o Outro fetichizado que habita seu pequeno mundo. Mas para que o principezinho possa apreender o valor da sua flor, ele precisa estar com as demais rosas. Diz a raposa: “Vai rever as rosas. Assim, compreenderás que a tua é a única no mundo.”
Ora, o que Saint-Exupéry sugere é que a produção do valor é uma produção social. O homem só se singulariza e constitui sua subjetividade complexa por meio da socialização plena. Eis mais uma lição da raposa: a categoria do valor (e o Amor é um valor essencial) é uma categoria social (portanto, relacional). É o que o Pequeno Príncipe vai dizer para as rosas: “Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sóis nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes ninguém. Sóis como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu a tornei minha amiga. Agora ela é única no mundo.” Deste modo, o principezinho, além da flor, conseguiu cativar a raposa. Foi o Pequeno Príncipe que tornou a raposa sua amiga (um gesto de reciprocidade à solicitação do Outro) e, deste modo, ela se tornou para si, única no mundo. Não apenas no mundo das raposas, mas no mundo de homens, animais e coisas.
Prosseguindo, o principezinho diz: “Sóis belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós.” Eis uma afirmação contundente. O Pequeno Príncipe começa a aprender por si só o que é o Amor (a vinculação do Amor com a Morte é uma aprendizagem nova para o principezinho como iremos ver adiante). Primeiro, ele diz: “Sóis belas, mas vazias”. Ora, a beleza no sentido da percepção sensível é necessária, mas insuficiente. É a tradução preliminar de uma frase clássica que iria ser proferida pela raposa: “O essencial é invisível aos olhos.” Este é o segredo da raposa e sua sabedoria do Amor. A raposa diz ainda: “Só se vê bem com o coração”. Com o coração não apenas se vê, mas se conhece (ela disse antes, como já salientamos: “A gente só conhece bem as coisas que cativou”).
Para Saint-Exupéry, a verdadeira Razão é o coração. Aliás, só se cativa com o coração. A Razão do coração muitas vezes é desconhecida pelo próprio coração, como diz o ditado. Entretanto, embora o coração desconheça, ele sabe e faz. É a Razão como mundo da essência, na acepção de Hegel. A Certeza e a Verdade da Razão, elemento da consciência de si, que, como diz o próprio filosofo alemão, “é em si e para si quando e porque é em si e para si para um Outro; quer dizer só é como algo reconhecido.” (HEGEL, 1995:22) Na verdade, a seção XXI de O Pequeno Príncipe equivale à dialética da consciência de si (a dialética do Senhor e do Escravo), exposta por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito.
Logo no inicio da seção XXI, o principezinho diz para a raposa: “Quem és tu? Tu és bem bonita...” Nesse momento, ele está imerso na percepção sensível e não conseguiu apreender a Verdade da Razão da raposa. Ele até poderia dizer, se soubesse deste segredo, apresentado depois pela raposa: “Sois bela, mas vazia.” Entretanto, é importante salientar que a percepção sensível não é desprezível. Foi por meio dela que o principezinho se sentiu atraído pela raposa e desenvolveu todo o diálogo da seção XXI. Ele se sentiu atraído pela raposa, mas só depois iria aprender que o essencial é invisível aos olhos. Na lógica dialética, a contingência – como beleza – não é desprezível, apesar de ser insuficiente.
6. Amor e Morte
Num certo momento, o principezinho – ele e não a raposa – vincula Amor e Morte. Ela nos diz que só sacrificamos a corporalidade viva e nossa singularidade única por uma outra singularidade única: “Não se pode morrer por vós”, diz o principezinho para a multidão de abstratividades fetichizadas. Só o Amor justifica a Morte, diria Saint-Exupéry. É a contradição suprema, pois Amor é vida, isto é, produção de sociabilidade humano-genérica.
Mas o principezinho prossegue, afirmando o que descobriu: “Um passante qualquer sem dúvida pensaria que a minha rosa se parece convosco. Ela sozinha, é, porém, mais importante que todas vós, pois foi ela quem eu roguei. Foi ela quem pus sob a redoma. Foi ela quem abriguei com o pára-vento. Foi nela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes, Já que ela é a minha rosa.”
O principezinho continua descobrindo novos elementos da ontologia social do Amor. Agora ele descobre por si só. E sugere, nessa passagem, a vinculação entre Amor e Trabalho, e, portanto, Valor e Trabalho (uma percepção ontológica inclusive salientada por Georg Lukács em sua “Ontologia do ser Social”). Para que a flor se tornasse única, ela deveria ser uma “construção” sócio-humana, no sentido de ser objeto de trabalho e de investimento humano. Nesse caso, o limite do principezinho é utilizar um objeto-fetiche da Natureza como seu exemplo (a sua Verdade é verdade, mas possui uma incrustação alegórica que o limita). Enfim, o principezinho teve um cuidado (e dedicação) com a flor. Nesse caso, voltamos a encontrar a categoria de tempo, ou seja, tempo de vida como um elemento da produção do Amor como valor primordial. O cuidado exigiu tempo para regar (“...foi ela quem eu reguei”); tempo cristalizado em objetos de proteção (“...Foi ela quem pus sob a redoma...e abriguei com o pára-vento”) e tempo de atenção dedicada, seja na prevenção pessoal nem sempre perfeita – o que é natural, pois as contingências e acasos se impõem (“Foi nela que eu matei as larvas – exceto duas ou três por causa das borboletas”); seja na recepção atenciosa de sua expressão comunicativa, que poderia se dar até mesmo no silêncio (“Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes”).
E logo depois, a raposa observa, talvez satisfeita com o principezinho por ele ter descoberto a Verdade da Razão: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”. Esta é uma afirmação ontológica da mais alta relevância. Ela se vincula com o que já destacamos: a captura do tempo de vida pelo capital compromete a produção do amor como valor primordial da sociabilidade. É um dos elementos da crise de sociabilidade e do próprio sócio-metabolismo da barbárie.
A categoria de tempo, como campo de desenvolvimento humano (como diria Marx) possui um sentido ontológico decisivo na Ontologia do Amor sugerida por Saint-Exupéry. Não apenas no sentido de que precisamos de tempo para conhecer e, portanto, para cativar; como tempo de trabalho, no sentido de trabalho da vida, trabalho vivo, do cuidado, salientado acima. Deste modo, o tempo, em si e para si, é o elemento que agrega valor à construção social (o Amor). Estamos, portanto, no interior, de uma apresentação do processo de Trabalho da sociabilidade primordial.
O principezinho diz para as rosas: “vós não sois nada ainda”. Saint-Exupéry nos diz que elas “ficaram desapontadas”. O que ele pode estar sugerindo é que, a multidão, mesmo fetichizada, sente seu vazio existencial e sua incapacidade de ser significativa. Entretanto, o desapontamento ainda é um afeto de mero desconcerto.
Salientamos acima que, na fábula de Antoine de Saint-Exupéry, a raposa é a representação alegórica invertida da humanidade oprimida. Mas é uma figura ambígua: a raposa é caçada pelos homens, mas também caça as galinhas. O mundo da raposa (a Terra) é dividido entre caçadores e galinhas. É quase uma ordem natural das coisas. É como se os oprimidos tivessem dentro de si a crença do senso comum de que a divisão hierárquica do trabalho, a divisão social entre os que mandem e os que obedecem, é parte da ordem natural do mundo. Ela não imaginava que houvesse outros planetas. Ficou intrigada quando o Pequeno Príncipe disse que vinha de outro planeta e não da Terra. “Num outro planeta?” – perguntou ela. E acreditava que no planeta do Pequeno Príncipe, o que havia eram caçadores, de um lado, e galinhas, do outro. Ela pergunta para o principezinho: “Há caçadores nesse planeta?”. Ele responde: “Não”. E a raposa exclama: “Que bom! E galinhas?”. “Também não”, diz o principezinho. “Nada é perfeito” – suspirou a raposa.
Na verdade, o oprimido carrega dentro de si a ordem social do mundo que lhe oprime. Para a raposa, o mundo perfeito seria um mundo de galinhas. E sem caçadores. Numa certa passagem, a raposa diz: “Os homens têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante.” Logo ao conhecer o pequeno Príncipe, ela imagina que ele seja uma raposa também – ou pelo menos seja da mesma classe. Se não é homem (que caça), então deve gostar de caçar galinhas. Tanto que, logo a seguir pergunta para o principezinho: “Tu procuras galinhas?”. Enfim, a raposa, apesar de sua sabedoria sobre o Amor e a sociabilidade primordial, está imersa em sua facticidade. Não consegue ir além desta estrutura estranhada de mundo social. Esta é a representação alegórica dos oprimidos, ou dos escravos – na dialética de Hegel.
O mundo dos oprimidos é um mundo monótono. É o que diz a raposa para o Pequeno Príncipe: “Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. E isso me incomoda um pouco.” O que incomoda a raposa é a dimensão pseudo-concreta do cotidiano. Ela diz que incomoda “um pouco” – o que significa que a monotonia não subverte seu estilo de vida, obrigando-a, a ir além do estar-aí no mundo. O seu incomodo é decorrente da dimensão fetichizada das relações sociais e do cotidiano abstrato das pessoas: “Todas as galinhas se parecem e todos os homens também”. Na verdade, ela não se incomoda com a divisão hierárquica entre caçadores e caçados. O que a raposa não percebe, pois está imersa na consciência contingente, é que a instituição da divisão do trabalho, que produz a ordem de caçadores e de caçados, e a monotonia de uma estrutura de classes, de uma ordem funcional (e mecânica), pois nada poderia surpreender no mundo da natureza, com suas leis férreas, é que produz a abstratividade das pessoas.
Contra o fetichismo do cotidiano, a raposa, imersa na consciência contingente, não poderia sugerir a subversão da ordem natural do mundo, tendo em vista que a fábula e sua forma alegórica constituíram o personagem com seus limites intrínsecos. Numa fábula, uma raposa é apenas uma raposa, quando poderia ser um homem emancipado da ordem do capital. A estrutura estética da fábula não permitiria a interversão dialética, o que poderia ocorrer, por exemplo, nos contos de fadas, quando beijado, o sapo se transforma, num passe de mágica, um príncipe encantado.
Deste modo, a raposa é a representação da consciência contingente dos oprimidos, que estão imersos na monotonia e no incomodo. Apesar disso, é um personagem capaz de expressar a sabedoria da sociabilidade primordial. É a raposa que ensina o que é o Amor para o Pequeno Príncipe. E não apenas isso – na perspectiva de Saint-Exupéry, o ato de cativar e a produção do Amor é um ato subversivo, capaz de instituir a sociabilidade plena no interior da ordem do capital. O que significa que Saint-Exupéry admite a possibilidade de uma ordem dual; de locis de vida significativa e de pessoas emancipadas da abstratividade do fetichismo das mercadorias. “Então será maravilhoso quando me tiveres cativado” – diz a raposa. Ou ainda: “..se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol”.
7. A biopolítica do Amor
O que nos resta perguntar é se é possível uma vida plena de sentido no interior da ordem do capital. Para Saint-Exupéry e sua fábula, apenas o Amor permite constituir os nexos orgânicos de um sócio-metabolismo alternativo à ordem do capital. O Amor no sentido de uma amizade plena é um sentimento desconhecido ou “algo quase sempre esquecido” na sociedade produtora de mercadorias (Adorno e Horkheimer observaram que “toda reificação é esquecimento”) (ADORNO E HORKHEIMER, 1985:78). O Amor como práxis prático-sensível de interação social com o Outro, na ótica de Saint-Exupéry, poderia ser um elemento compositivo de uma nova moral (e uma nova ética) como pressuposto de uma emancipação para além da ordem do capital.
Nesta seção XXI de O Pequeno Príncipe, apreendemos os elementos de uma proposta política de novo tipo. Saint-Exupéry sugere em 1942 uma biopolítica, uma política sócio-metabólica, limitada por pertencer ainda à ordem da cotidianidade. Mas é do cotidiano e na perspectiva dele, que se pode constituir as forças existenciais para a emancipação humana. Antes de Herbert Marcuse e da contracultura, Saint-Exupéry constatou que o Amor, não no sentido instrumental ou pueril da ilusão romântica, como disseminado pela ordem burguesa, seria subversivo à lógica do capital. Entretanto, teria Saint-Exupéry apreendido os limites desta biopolítica do Amor no interior da ordem do capital?
A sabedoria do Amor é transmitida pela raposa, a representação alegórica dos oprimidos imersos na sua contingência cotidiana. É sua imersão contingente no cotidiano que a coloca diante da tragédia. Na verdade, existe uma tragédia na seção XXI de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. A raposa possui uma sabedoria da tragédia. Ela sabe que chegara a “hora da partida” daquele que a cativou. Isto é, a presença do Amor é precária. Diz a raposa: “Ah! Eu vou chorar!”. Ora, a presença do Amor é fluída na ordem do capital. Esta é a tragédia de uma sabedoria – a sabedoria do Amor. Diante do desalento, mas não desencanto, da raposa, o principezinho diz: “A culpa é tua. Eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...”. E a raposa diz: “Quis”. “Mas tu vais chorar!” – disse o principezinho. “Vou”, disse a raposa. E o Pequeno Príncipe arremata: “Então, não terás ganho nada!”. “Terei, sim, por causa da cor do trigo.”, disse a raposa.
8. A Tragédia do Amor
Eis a última lição da raposa para o Pequeno Príncipe. Estamos num segundo momento da exposição da seção XXI do conto de Saint-Exupéry. É o momento da tragédia, o que significa que existe um ato de catarse. A impossibilidade da realização plena do Amor e de seu sócio-metabolismo é uma tragédia na ordem pessoal e da subjetividade estranhada. Como tragédia, subsiste uma aprendizagem existencial que ainda permanece na ordem da contingência. A raposa disse: “Terei, sim, por causa da cor do trigo”.
Certa vez, a raposa disse para o principezinho: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado, O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.
O que tal passagem sugere é que o Amor é capaz de re-significar as coisas do cotidiano. Ele dá vida à natureza morta. Como o próprio ato teleológico do trabalho, é capaz de dar vida aos mortos, como observou certa vez Marx. É provável que o Amor, expresso pela sabedoria da raposa, o ato de cativar, seja a expressão, no plano do sentimento, da atividade do trabalho como categoria ontológica fundante e fundamental do ser social.
“Os campos de trigo não me lembram coisa alguma”, disse a raposa. “Eu não como pão” – afirmou ela (é o mesmo que o principezinho disse para as rosas – “vós não sois nada ainda”). Ora, como salientamos acima, apenas o trabalho – e o Amor – são capazes de criar valor (que é fonte do dever-ser). Mas o trigo, para a raposa – diferentemente das rosas, para o principezinho - iria adquirir valor através da reminiscência do Outro, o único capaz de ser fonte do Amor. Foi a reminiscência do principezinho, com seus cabelos dourados, que constituiu na subjetividade da raposa um significado para o trigo. O trigo passou a valer alguma coisa. Antes, o trigo para a raposa, não valia nada. Foi através da mediação do principezinho, que cativou a raposa, que o trigo adquiriu vida: “O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.
É apenas através do Outro, ou como diria Hegel, de outra consciência de si, que a natureza adquire um significado de vida e atributos como a beleza (o que significa que o Belo – e porque não, o Bem – objeto da Estética e da Ética, respectivamente, possuem um lastro societário profundo, pois são atributos sempre mediados pela relação social com o Outro). Será o principezinho que constituirá o amor da raposa pelo “barulho do vento no trigo”. É o ato de amor mediado pela Natureza. Aliás, o ato de cativar não apenas dá uma significação ao Outro, mas à Natureza morta que o cerca. Isto é, uma significação através da reminiscência e da memória.
Mas existe uma diferença crucial na relação mediativa do Amor entre a raposa e o principezinho. O trigo é o elemento mediativo da reminiscência da raposa, cativada pelo principezinho como consciência de si (diríamos no sentido hegeliano, a consciência de si duplicada). Por outro lado, as rosas é o elemento mediativo da reminiscência do principezinho, “cativado” pela flor. Ou seja: a raposa foi cativada pelo Pequeno Príncipe, que possui, no plano alegórico da fábula de Saint-Exupéry, uma representação antropomórfica. Pelo menos no plano da forma, a raposa é cativada e constituiu sua relação de Amor, por uma representação humana. Com o Pequeno Príncipe ocorre o contrário. Ele é cativado pela flor, uma representação natural-fetichizada do Outro humano-genérico. Esse detalhe talvez expresse sua imersão no mundo fetichizado e a solidão profunda do principezinho como representação da burguesia esclarecida.
É interessante que a construção do personagem do principezinho é complexa, remetendo a uma figura aristocrática, símbolo do Poder como expressão da relação primordial do Capital. Como já discutimos, a sua representação como criança e seu diminutivo (principezinho), sugere uma espaço de imaginação e de negação do principio de realidade (o pequeno príncipe ainda poderia almejar a ser feliz, apesar de ser Príncipe e cair na solidão do Poder).
A título de Conclusão
Aos 31 de julho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry, aviador, poeta e escritor, mas acima de tudo, um humanista, desaparece ao realizar sua oitava missão de reconhecimento sobre a França. Seu pequeno conto “O Pequeno Principe” possui um importante valor intelectual-moral. Saint-Exupéry só escreveu aquilo que viveu, mas não no sentido autobiográfico. Por meio de alegorias, ele apreendeu o sentido da emancipação humana na época da barbárie social. Vivia-se a Segunda Guerra Mundial e seu conto expressa as angústias e esperanças de um homem, que vive as “trevas do seu tempo”.
O “Pequeno Príncipe” foi traduzido para mais de oitenta línguas e dialetos e da qual já foram publicados mais de oito milhões de exemplares. Saint-Exupery recomendou: “leiam de maneira séria”; e lendo este livro seriamente se compreenderá o desespero de seu autor: o mundo está passando por um momento difícil e sério, a Europa em guerra, o avanço do nazismo, a França ocupada, os seus cidadãos reféns, e para ele o pior de tudo: os franceses no exílio estão divididos, cada homem imerso em seu poço de desespero. É preciso recuperar o sentido do ser social no sentido do ser humano-genérico. O que significa que nos tempos de barbárie social é imperativo tocar o coração dos homens, enfim, é preciso libertar o homem da escravidão do mundo fetichizado que nos faz esquecer os valores fundantes e fundamentais da sociabilidade. É necessário trazer o homem para o centro de seu universo.
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