10.12.08

Trabalho e Amor
Uma leitura sócio-ontológica de "O Pequeno Principe", de Antoine Saint-Exúpery





A leitura da seção XXI do conto O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, nos sugere, por meio de elementos alegóricos, o que poderíamos considerar como sendo uma apresentação dos nexos constitutivos (e mediativos) da sociabilidade plena do mundo dos homens . A categoria central desta ontologia do ser social sugerida por Saint-Exupéry é a categoria do Amor. Nesse momento, o escritor francês torna-se legatório de uma tradição filosófica moderna que coloca o Amor como categoria ontológica da sociabilidade humana.

Por exemplo, é de Ludwig Feuerbach a frase: “Não ser nada e não amar é o mesmo.” Para o filósofo alemão, é o processo de trabalho do Amor (entre o Eu e o Tu) que institui e constitui o ser social. Feuerbach criticava a religião por ser um reflexo fantástico (ou alienado), através da mediação de um ou muitos deuses, das qualidades humanas. Mas ele não pretendia abolir a religião em si, mas sim, sua forma estranhada (FEUERBACH, 1996:150) Feuerbach sugeria, deste modo, uma religião dos homens baseada na relação sentimental, a relação cordial dos homens entre si, sem intermediários, ou seja, uma religião (que era a sua política) baseada no Amor entre o Eu e o Tu, com o amor entre os sexos sendo uma das formas supremas, senão a forma culminante, em que se praticava sua nova religião. É possível dizer que o Amor prefigurava no materialismo de Feuerbach, a forma mistificada da categoria ontológica do Trabalho, desenvolvida, mais tarde, pelo jovem Marx, numa perspectiva histórico-materialista. Na verdade, a dimensão sócio-ontológica do Trabalho estava oculta pelo materialismo vulgar de Feuerbach, que era incapaz de apreender os nexos materiais da atividade prático-sensival da história (com a autogênese do homem se dando através do trabalho) (MARX, 2004:79).

É interessante que em sua fábula “O Pequeno Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry incorpore o Amor como nexo constitutivo do mundo dos homens. É claro que Saint-Exupéry se utiliza de recursos narrativos alegóricos no desenvolvimento narrativo de “O Pequeno Príncipe”. Mas, nesse caso, a forma estética é tão-somente a mediação para expressar os elementos de um processo de Trabalho do Amor (se poderíamos dizer assim).

Na perspectiva lukácsiana, a categoria do Trabalho é a base sócio-ontológica pressuposta da categoria de Reprodução Social (o filosofo marxista húngaro Georg Lukács nos deixou uma obra inacabada – Por Ontologia do Ser Social, cujo objetivo original era elaborar as bases materialistas de uma Ética). Para Lukács, depois de Marx e Engels, o Trabalho é categoria fundante (e fundamental) do ser social (LUKÁCS, 1988:17). Nossa hipótese neste ensaio é que, no conto de Saint-Exupéry, a categoria do Trabalho está pressuposta no ato de cativar, tanto que os elementos constitutivos do laço social, que é profundamente intersubjetivo, são os mesmos que estão pressupostos na categoria ontológica do Trabalho (tempo e valor).

Na verdade, o ato de cativar é a categoria ontológica central da instância sócio-reprodutiva, diria Saint-Exupéry. Através da dissecação do ato de cativar, ele nos apresenta o Amor como laço social primordial, categoria fundante e fundamental da Reprodução Social e inclusive, como base de uma biopolítica existencialista.

Quais seriam esses elementos ontológicos do processo de Trabalho do Amor, sugeridos pelo autor do conto “O Pequeno Príncipe” ? (utilizamos a expressão processo de trabalho do Amor na acepção feuerbachiana, ou seja, como o “cimento constitutivo” dos laços sociais humano-genéricos). Ora, é na seção XXI de seu conto clássico que Saint-Exupéry nos apresenta estes elementos. O objetivo deste ensaio é discriminar tais elementos, expondo seus vínculos intrínsecos com as determinações próprias da categoria do Trabalho, presente na Ontologia do Ser Social, de Georg Lukács. Além disso, em Saint-Exupéry é plenamente perceptível uma critica mordaz, embora contingente, do sócio-metabolismo do capital e da sociedade produtora de mercadoria e seus nexos fetichizados.

1. Amor e Tempo

Em primeiro lugar, para se produzir o Amor é imprescindível cativar, ou seja, “criar laços”. Este é o “gancho” heurístico fundamental utilizado por Saint-Exupéry na Parte XXI. Cativar – e estamos sempre utilizando o verbo cativar, que sugere ação – é a “matéria-prima” do Amor. Nesta perspectiva, o ato de cativar é a própria disposição humano-genérica primordial, pois é ele que irá promover a constituição dos laços sociais e da sociabilidade autêntica.

Entretanto, para se cativar, diz Saint-Exupéry, é imprescindível o elemento do tempo. Ele se refere a tempo de vida e otimum e não propriamente “tempo livre”, no sentido de tempo livre da produção, pois hoje, na sociedade de mercadorias, o “tempo livre” é muitas vezes, tempo de consumo, explicitando-se como a esfera da imersão no fetiche da mercadoria (por exemplo, no tempo livre as pessoas vão aos shoppings centers). Apesar disso, pode-se dizer que ainda podemos conhecer amigos e coisas nos espaços cativos da mercadoria. Eis a lógica contraditória do capital.

Quando a raposa diz: “Por favor...cativa-me”, o Pequeno Príncipe responde: “Eu até gostaria, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.” O principezinho busca descobrir e conhecer amigos e coisas. Mas é a raposa que vai lhe dizer um dos elementos básicos deste processo de conhecimento. Diz ela: “A gente só conhece bem as coisas que cativou. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas não existem lojas de amigos, os homens não têm amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!” Eis uma crítica candente à sociedade das mercadorias.

A mercantilização universal parece ser absoluta, mas não é. A forma-mercadoria não consegue se apropriar totalmente da produção da sociabilidade humano-genérica pressuposta nos laços sociais dilacerados. É claro que o capital e a lógica mercantil esgarçam a verdadeira sociabilidade, fetichizam relações sociais, dessocializam homens e mulheres e, deste modo, os tornam incapazes de produzir aquilo que o principezinho busca: amigos. Entretanto, pode-se dizer que persiste à margem do sócio-metabolismo do capital, a produção de amigos que é intrinsecamente produção social – aliás, produção social sempre convulsionada pela lógica da mercadoria. Talvez isso ocorra porque a produção de amigos ou de laços sociais pressupõe, como nos diz Saint-Exupery, algo que o capital quer obsessivamente para si – o tempo.

O capital é um “sujeito” expropriador do tempo de vida, sempre intervertendo-o em tempo de trabalho. Mesmo o tempo livre nas sociedades mercantis complexas torna-se tempo de consumo de mercadorias e de relações sociais fetichizadas. Portanto, é a estrutura de cotidiano imersa na pseudo-concreticidade, como nos diria Kosik, que torna incapaz que os homens possam ter tempo para conhecer amigos e coisas. E se não têm tempo, não conseguem cativá-las e, portanto, conhecê-las (KOSIK, 1968: 26).

Nesse sentido, o que Saint-Exupéry ressalta é o amor como principio heurístico, de conhecimento do Outro (e, portanto, de si próprio, pois estamos diante de uma relação reflexiva). Para se criar laços sociais e, portanto, para se produzir o amor como sentimento ontológico da sociabilidade autêntica, o tempo de vida é imprescindível. É Marx que diz: “ o tempo é o campo do desenvolvimento humano”. É através dele que o homem desenvolve suas capacidades humano-genéricos, sendo uma delas, a produção do Amor, a elaboração dos laços sociais e o conhecimento de amigos e coisas (MARX, 1985: 33).

Quando Saint-Exupéry fala em cativar, ele quer dizer “construção do laço social”, ou seja, aquele elemento dilacerado pela sociabilidade dessocializadora do capital. O laço social (ou o ato de cativar) é, se podemos dizer assim, um valor estratégico do devir humano dos homens. Deste modo, quando dizemos barbárie social, salientamos a forma societal que dilacerou à exaustão os laços sociais e a capacidade humana de produzi-los. Barbárie social é submergir-se no tempo de trabalho – trabalho no sentido de trabalho estranhado. Tempo de vida que é tempo de trabalho alienado de si e dos outros.

Talvez, ao vislumbramos a multidão, possamos intuir que ali se encontram laços sociais e a sociabilidade em si. Na verdade, a sociedade das multidões é uma sociedade do fetiche, permeada do fetichismo da mercadoria que impregna as relações sociais; não a totalidade de suas relações sociais, é claro, mas a maior parte dela. Como salientamos, a produção de amigos e de sociabilidade como laços sociais não-fetichizados, resiste, como momento não-predominante, à lógica sócio-metabólica do capital.

Quando Saint-Exupéry diz que o tempo é imprescindível, ele quer dizer que precisamos cultivar um atributo indispensável: a paciência. Diz ele: “É preciso ser paciente – respondeu a raposa – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.” É uma sugestão interessante do escritor francês. Ele ressalta o gesto primordial da presença silenciosa e do olhar interessado, mas discreto. Ser paciente, nesse caso, é exercer e provar apenas a presença ou a pura parousia. Não é uma presença indiferente, mas uma presença ativa e insistente.


2. Amor, Linguagem e Ritual

Diz ainda a raposa, a grande sábia do ato de cativar: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentará um pouco mais perto...”. O ato de cativar pressupõe a paciência, mas uma paciência que constrói, através do tempo de vida, sua linguagem. Entretanto, a linguagem da paciência não é a linguagem do falatório, pois ela é fonte de mal-entendidos. Para Saint-Exupéry, a linguagem como falatório está clivada de fetiches e impregnada de obstaculizações da plena comunicação entre os homens. Na verdade, a sociedade do capital é a sociedade do falatório ou como diria Heidegger, falatório do impessoal (man) e do impróprio (uneigentlich), tão criticado pelo. próprio Martin Heidegger em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 1995:56). A sociedade do capital é a sociedade da não-comunicação, pois não há verdadeira comunicação sem a linguagem da paciência, como nos diria Saint-Exupéry. O atributo da paciência sugere uma nova forma de comunicação – a comunicação prático-sensivel, a comunicação do gesto primordial: “...cada dia te sentarás um pouco mais perto...”. Esse simples gesto significaria interesse no Outro, elemento do ato de cativar e de percepção sensível persistente.

Outro detalhe: é interessante observar que a raposa está disponível para o ato de cativar. Este é um pressuposto importante, pois sem a disposição prévia do sujeito, o ato de cultivar não se efetiva. Ela diz sempre: “Por favor...cativa-me!”. Enfim, o outro me cativa porque eu quero ser cativado. Existe, nesse caso, um ato de reciprocidade pleno. É quase que um jogo de espelhos reflexos.

Elementos da Produção do Amor
(Segundo Antoine de Saint-Exupéry)

Ato de Cativar
Tempo de Vida e de Otium
Ritual


Mas o outro elemento da produção do Amor, além do ato de cativar e do tempo como tempo de vida e de otium (paciência e dedicação para o Outro e para si mesmo), é o ritual. É uma observação curiosa. O escritor Antoine de Saint-Exupéry é francês, e o ritual é um tema candente da sociologia francesa (de Durkheim a Boudieu). O ritual, como observam sociólogos e antropólogos franceses, é signo de solidariedade. É expressão da consciência coletiva. Não há sociedade ou laço social sem rituais.
A raposa prossegue explicando o elemento do ritual, indispensável para a produção do Amor (na ótica de Saint-Exupéry, o ato de cativar é seu mero “combustível”). Diz ela: “Teria sido melhor se voltasses à mesma hora.” Nessa observação da raposa, a necessidade da reiteração do tempo de vida novamente está posta. Agora ele se dá através de um ritual não-institucionalizado, mas espontâneo. Prossegue a raposa: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!. Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração...” . E destaca: “É preciso que haja um ritual.”

Ora, o ritual é a disciplina sócio-espacial do tempo. É um elemento ontológico da própria socialidade, pois sua lógica intrínseca é a da regularidade da Natureza. Portanto, o ritual, sua periodização e efetividade sob circunstâncias de expectativa, remete à ordem natural, base do próprio ser social. Mas o que interesse, no caso da ritualização como elemento da produção do Amor, é a construção da expectativa do Outro, da sedimentação de um interesse no tempo e espaço de uma relação social. “É preciso saber a hora de preparar meu coração” – diz a raposa. É preciso construir/elaborar uma “natureza” – um espaço - dentro de mim que seja a expressão da presença virtual do Outro, sujeito-objeto do meu ato de cativar. Enfim, a produção do Amor, tal como o processo de trabalho, pressupõe uma regularidade de gestos da corporalidade viva (o ritual), capaz de promover, a partir de um processo cumulativo, um salto qualitativamente novo na interação entre as pessoas.

No mundo do capital, com sua fluidez persistente e sua dinâmica diruptiva, onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, o que acontece com o tempo, ocorre com o ritual – ele se transforma num ato mecânico, sem conteúdo e sem disposição subjetiva. No ritual do capital não há a “preparação do coração”. Provavelmente, pode-se comprar “ corações preparados” – mensagens, frases feitas e clichês pré-concebidos para expressar um conteúdo vazio de expectativa.

Mas a raposa ainda vai explicar para o principezinho o que é o ritual. Diz ela: “É uma coisa muito esquecida também. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros; uma hora, das outras horas.” Ora, no processo de trabalho do Amor o ritual não é o cotidiano como pseudo-concreticidade. Não existem expectativas no cotidiano fetichizado. Sua regularidade é muda. Sua natureza é mecânica. O ritual do capital equaliza e abstrai, enquanto o verdadeiro ritual, aquele elemento da produção do Amor, singulariza e expressa o concreto em sua múltipla riqueza particular. Na sociedade do fetichismo, o ritual interverte-se, deste modo, em cotidiano como pseudo-concreticidade. Como salientamos, ele nega a singularidade. O que nos cabe perguntar é se é possível o Amor numa sociedade do cotidiano fetichizado.

Tal como a interversão do tempo, a negação do ritual, sua dilaceração formal, abstrata e mecânica, age contra a socialidade humano-genérica. No ritual do capital, o tempo é o tempo quantitativo, das horas do relógio mecânico, ou mais abstrato ainda, o relógio digital. Mas no ritual da socialidade do Amor, o tempo é um tempo qualitativo, tempo de vida que é medido pela percepção de que o Outro se aproxima de mim (como disse a raposa: “ cada dia, te sentarás um pouco mais perto...”).

A medida do tempo de vida é a medida dos laços sociais. Mas no cotidiano da modernidade capitalista, um dia possui 24 horas – um dia é igual ao outro. Mas a partir da lógica dos laços sociais não é assim. Pode-se dizer: ela marcou o encontro às 2 horas da tarde, e já são 13:30 horas. Logo a encontrarei, segundo o tempo quantitativo do capital. Mas embora faltem apenas 30 minutos, sei que ela não gosta de mim. Deste modo, o tempo que me separa dela é infinito.

3. Amor e Necessidade

É interessante que na seção XXI, de “O Pequeno Príncipe”, é a raposa que nos apresenta a sabedoria do Amor. É ela que ensina o Pequeno Príncipe a arte do amor e seus significados (Antoine de Saint-Exupéry nos fala do ato de cativar que pressupomos ser a idéia do Amor, como apresentamos na Introdução). A raposa é caçada pelos homens, mas conhece o processo de produção do Amor, processo de produção dos laços sociais e da própria socialidade que é intrínseca tão-somente ao mundo dos homens. Neste momento, Saint-Exupéry elabora uma crítica de uma forma histórica do mundo dos homens. Aquele mundo em que vive a raposa é o mundo do capital, dividido entre caçadores e caça - a raposa é a caça. Ao tornar-se porta-voz da sabedoria do Amor, a raposa aparece como a alegoria de um homem não-humano. Deste modo, ela pode representar a hoinidade oprimida desumanizada.

No plano alegórico, a raposa dialoga com o principezinho que é seu Outro reverso. É irônico que seja a raposa, que é um animal, que ensina o principezinho o que é o mundo dos homens. Na verdade, ela o faz relembrar o que é o mundo dos homens. A raposa vê nele um amigo. Aliás, para ela, quem não é caçador, deve ser seu amigo (a raposa divide o mundo entre caçadores e caça – se não é caçador, é caça). Por outro lado, poderíamos dizer que o principezinho é a hominidade dominante que se interroga, isto é, que busca a autoconsciência.

Ora, no conto “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, raposa e principezinho talvez sejam alegorias de uma mesma condição humana intervertida numa dupla forma alegórica (raposa e o principezinho). Como salientamos, o principezinho é a hominidade dominante, mas interrogante. Talvez possa representar os intelectuais de classe media. Ou ainda o herói burguês problemático imerso no fetichismo da mercadoria. Por outro lado, no jogo alegórico do conto de Saint-Exupéry, os oprimidos aparecem como animais (a raposinha) que preservam a sabedoria dos laços sociais. A raposinha conhece o invisível para os olhos – que é o essencial. É ela que conhece a sabedoria da produção dos laços sociais e do Amor, ensinando ao principezinho uma ontologia da sociabilidade.

Ele, o Pequeno Príncipe, não sabe o que é cativar e criar laços. Tanto que interroga, surpreso: “Criar laços?”. E a raposa, responde: “Exatamente. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”

O que a raposa nos diz é que laços sociais se criam por meio da constituição de um sistema de necessidades recíprocas. Isto é, existe um nexo ontológico entre sociabilidade e necessidade. É ele que funda a sociedade humana por meio do trabalho social. Marx observou, certa vez, que “a comunidade é a força produtiva primordial”. Foi por meio da cooperação social que o homem se fez homem. É de Lukács a frase clássica: “o homem é um animal que se fez homem através do trabalho’. E diremos mais: o trabalho pressupõe como sistema de determinações reflexivas, cooperação social e necessidade recíproca da presença do Outro, divisão do trabalho e solidariedade, linguagem e comunicação interpessoal.

É na medida em que temos necessidade do Outro (e vice-versa) que constituímos, por meio do ato de cativar, os laços sociais. Deste modo, o que Antoine de Saint-Exupéry nos sugere que é o Amor que funda a sociedade humana. Enfim, o ser social é baseado no sistema de necessidade. Estamos diante de um complexo dialético de determinações da produção da vida social e do Amor como categoria ontológica da produção da interpessoalidade.

4. Amor e Unicidade

O próximo elemento essencial sugerido por Antoine de Saint-Exupéry, por meio da fala da raposa, é a unicidade do Outro. Na medida em que tenho necessidade de ti e tu tens necessidade de mim, constitui-se uma relação social que implica transparência e comunicação plena (não necessariamente por meio da linguagem propriamente dita). Enfim, surge uma singularidade recíproca. Na verdade, os entes singulares e a subjetividade pessoal são constituídos por meio da criação de laços sociais: eis uma conclusão interessante de Saint-Exupéry. O ato de cativar e o processo de criação de laços pessoais dissolvem o fetiche da abstratividade, que caracteriza a forma de ser da interpessoalidade cotidiana.

Na sociedade das mercadorias, uma pessoa é igual a cem mil outras pessoas. A sociedade das multidões se impõe como uma sociedade do individualismo estrutural. A pessoalidade é um dado resistente à lógica do capital e sua abstratividade fundamental. A perda da unicidade, salientada por Walter Benjamin, ao tratar da obra de arte, é apenas a expressão desta perda da pessoalidade primordial, pessoalidade que se dissolve na sociedade de massas (BENJAMIN, 1988: 87).

Saint-Exupéry sugere que na sociedade do capital a criação de laços interpessoais e a produção do Amor, como sugerimos acima, podem ser um nexo de resistência à modernização persistente. A raposa diz: “Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”. Estamos diante de uma perspectiva contingente de resistência pessoal à voracidade da abstratividade mercantil que penetra na esfera das relações sociais, fetichizando relações humanas, dissolvendo a singularidade pessoal e a subjetividade das pessoas.

É interessante que, a seguir, o principezinho identificou a experiência do Amor, exposta pela raposa, com a experiência que ele tinha em seu pequeno mundo, isto é, com a experiência afetiva com uma flor. A raposa falava de laços sociais na ótica dos oprimidos (a raposa era a caça). Entretanto, embora o principezinho não pertencesse ao mundo dos oprimidos, mas sim ao mundo dos opressores, ele ainda preservava uma humanidade dentro de si. Ele não sabia o que era cativar e criar laços, mas reconheceu a seguir, que mantinha, em seu pequeno mundo, uma relação de Amor com uma flor.

A flor é um objeto natural. Na alegoria de Saint-Exupéry, tal como a raposa, ela tende a representar o Outro fetichizado. A flor é o Outro fetichizado do Pequeno Príncipe. Apesar de fetichizado, o Outro preserva sua significação reflexiva. Através dele posso me reconhecer. Diz o Pequeno Príncipe: “Existe uma flor...eu creio que ela me cativou.” Ora, apenas o homem é capaz de dar significado – e valor – a objetos da Natureza.

5. Amor e Valor

O valor, como observou Lukács, é uma produção do devir humano dos homens. Cativar é criar um valor no plano da interpessoalidade. É o ato primordial da Ética e da Moral. Por meio do ato de cativar reproduzimos, quase que diariamente, os laços sociais e os pressupostos ontológicos da Ética e da Moral. É possível dizer que o principezinho representa a possibilidade alegórica da humanidade dilacerada pelo capital, emancipar-se. É um pequeno Príncipe, no sentido que é um Príncipe-criança. O que significa que ainda resta uma esperança. As crianças (e o principezinho é uma criança) conservam, dentro de si, as promessas da emancipação humana do fetichismo social. Talvez em Saint-Exupéry tenhamos a prefiguração das crianças como o “Bom Selvagem” de Rousseau.

O principezinho conseguiu aprender a lição de humanidade da raposa. Mas ele só pode exercitá-la com a flor, o Outro fetichizado que habita seu pequeno mundo. Mas para que o principezinho possa apreender o valor da sua flor, ele precisa estar com as demais rosas. Diz a raposa: “Vai rever as rosas. Assim, compreenderás que a tua é a única no mundo.”
Ora, o que Saint-Exupéry sugere é que a produção do valor é uma produção social. O homem só se singulariza e constitui sua subjetividade complexa por meio da socialização plena. Eis mais uma lição da raposa: a categoria do valor (e o Amor é um valor essencial) é uma categoria social (portanto, relacional). É o que o Pequeno Príncipe vai dizer para as rosas: “Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sóis nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes ninguém. Sóis como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu a tornei minha amiga. Agora ela é única no mundo.” Deste modo, o principezinho, além da flor, conseguiu cativar a raposa. Foi o Pequeno Príncipe que tornou a raposa sua amiga (um gesto de reciprocidade à solicitação do Outro) e, deste modo, ela se tornou para si, única no mundo. Não apenas no mundo das raposas, mas no mundo de homens, animais e coisas.

Prosseguindo, o principezinho diz: “Sóis belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós.” Eis uma afirmação contundente. O Pequeno Príncipe começa a aprender por si só o que é o Amor (a vinculação do Amor com a Morte é uma aprendizagem nova para o principezinho como iremos ver adiante). Primeiro, ele diz: “Sóis belas, mas vazias”. Ora, a beleza no sentido da percepção sensível é necessária, mas insuficiente. É a tradução preliminar de uma frase clássica que iria ser proferida pela raposa: “O essencial é invisível aos olhos.” Este é o segredo da raposa e sua sabedoria do Amor. A raposa diz ainda: “Só se vê bem com o coração”. Com o coração não apenas se vê, mas se conhece (ela disse antes, como já salientamos: “A gente só conhece bem as coisas que cativou”).

Para Saint-Exupéry, a verdadeira Razão é o coração. Aliás, só se cativa com o coração. A Razão do coração muitas vezes é desconhecida pelo próprio coração, como diz o ditado. Entretanto, embora o coração desconheça, ele sabe e faz. É a Razão como mundo da essência, na acepção de Hegel. A Certeza e a Verdade da Razão, elemento da consciência de si, que, como diz o próprio filosofo alemão, “é em si e para si quando e porque é em si e para si para um Outro; quer dizer só é como algo reconhecido.” (HEGEL, 1995:22) Na verdade, a seção XXI de O Pequeno Príncipe equivale à dialética da consciência de si (a dialética do Senhor e do Escravo), exposta por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito.

Logo no inicio da seção XXI, o principezinho diz para a raposa: “Quem és tu? Tu és bem bonita...” Nesse momento, ele está imerso na percepção sensível e não conseguiu apreender a Verdade da Razão da raposa. Ele até poderia dizer, se soubesse deste segredo, apresentado depois pela raposa: “Sois bela, mas vazia.” Entretanto, é importante salientar que a percepção sensível não é desprezível. Foi por meio dela que o principezinho se sentiu atraído pela raposa e desenvolveu todo o diálogo da seção XXI. Ele se sentiu atraído pela raposa, mas só depois iria aprender que o essencial é invisível aos olhos. Na lógica dialética, a contingência – como beleza – não é desprezível, apesar de ser insuficiente.

6. Amor e Morte

Num certo momento, o principezinho – ele e não a raposa – vincula Amor e Morte. Ela nos diz que só sacrificamos a corporalidade viva e nossa singularidade única por uma outra singularidade única: “Não se pode morrer por vós”, diz o principezinho para a multidão de abstratividades fetichizadas. Só o Amor justifica a Morte, diria Saint-Exupéry. É a contradição suprema, pois Amor é vida, isto é, produção de sociabilidade humano-genérica.

Mas o principezinho prossegue, afirmando o que descobriu: “Um passante qualquer sem dúvida pensaria que a minha rosa se parece convosco. Ela sozinha, é, porém, mais importante que todas vós, pois foi ela quem eu roguei. Foi ela quem pus sob a redoma. Foi ela quem abriguei com o pára-vento. Foi nela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes, Já que ela é a minha rosa.”

O principezinho continua descobrindo novos elementos da ontologia social do Amor. Agora ele descobre por si só. E sugere, nessa passagem, a vinculação entre Amor e Trabalho, e, portanto, Valor e Trabalho (uma percepção ontológica inclusive salientada por Georg Lukács em sua “Ontologia do ser Social”). Para que a flor se tornasse única, ela deveria ser uma “construção” sócio-humana, no sentido de ser objeto de trabalho e de investimento humano. Nesse caso, o limite do principezinho é utilizar um objeto-fetiche da Natureza como seu exemplo (a sua Verdade é verdade, mas possui uma incrustação alegórica que o limita). Enfim, o principezinho teve um cuidado (e dedicação) com a flor. Nesse caso, voltamos a encontrar a categoria de tempo, ou seja, tempo de vida como um elemento da produção do Amor como valor primordial. O cuidado exigiu tempo para regar (“...foi ela quem eu reguei”); tempo cristalizado em objetos de proteção (“...Foi ela quem pus sob a redoma...e abriguei com o pára-vento”) e tempo de atenção dedicada, seja na prevenção pessoal nem sempre perfeita – o que é natural, pois as contingências e acasos se impõem (“Foi nela que eu matei as larvas – exceto duas ou três por causa das borboletas”); seja na recepção atenciosa de sua expressão comunicativa, que poderia se dar até mesmo no silêncio (“Foi ela quem eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes”).

E logo depois, a raposa observa, talvez satisfeita com o principezinho por ele ter descoberto a Verdade da Razão: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”. Esta é uma afirmação ontológica da mais alta relevância. Ela se vincula com o que já destacamos: a captura do tempo de vida pelo capital compromete a produção do amor como valor primordial da sociabilidade. É um dos elementos da crise de sociabilidade e do próprio sócio-metabolismo da barbárie.

A categoria de tempo, como campo de desenvolvimento humano (como diria Marx) possui um sentido ontológico decisivo na Ontologia do Amor sugerida por Saint-Exupéry. Não apenas no sentido de que precisamos de tempo para conhecer e, portanto, para cativar; como tempo de trabalho, no sentido de trabalho da vida, trabalho vivo, do cuidado, salientado acima. Deste modo, o tempo, em si e para si, é o elemento que agrega valor à construção social (o Amor). Estamos, portanto, no interior, de uma apresentação do processo de Trabalho da sociabilidade primordial.

O principezinho diz para as rosas: “vós não sois nada ainda”. Saint-Exupéry nos diz que elas “ficaram desapontadas”. O que ele pode estar sugerindo é que, a multidão, mesmo fetichizada, sente seu vazio existencial e sua incapacidade de ser significativa. Entretanto, o desapontamento ainda é um afeto de mero desconcerto.

Salientamos acima que, na fábula de Antoine de Saint-Exupéry, a raposa é a representação alegórica invertida da humanidade oprimida. Mas é uma figura ambígua: a raposa é caçada pelos homens, mas também caça as galinhas. O mundo da raposa (a Terra) é dividido entre caçadores e galinhas. É quase uma ordem natural das coisas. É como se os oprimidos tivessem dentro de si a crença do senso comum de que a divisão hierárquica do trabalho, a divisão social entre os que mandem e os que obedecem, é parte da ordem natural do mundo. Ela não imaginava que houvesse outros planetas. Ficou intrigada quando o Pequeno Príncipe disse que vinha de outro planeta e não da Terra. “Num outro planeta?” – perguntou ela. E acreditava que no planeta do Pequeno Príncipe, o que havia eram caçadores, de um lado, e galinhas, do outro. Ela pergunta para o principezinho: “Há caçadores nesse planeta?”. Ele responde: “Não”. E a raposa exclama: “Que bom! E galinhas?”. “Também não”, diz o principezinho. “Nada é perfeito” – suspirou a raposa.

Na verdade, o oprimido carrega dentro de si a ordem social do mundo que lhe oprime. Para a raposa, o mundo perfeito seria um mundo de galinhas. E sem caçadores. Numa certa passagem, a raposa diz: “Os homens têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante.” Logo ao conhecer o pequeno Príncipe, ela imagina que ele seja uma raposa também – ou pelo menos seja da mesma classe. Se não é homem (que caça), então deve gostar de caçar galinhas. Tanto que, logo a seguir pergunta para o principezinho: “Tu procuras galinhas?”. Enfim, a raposa, apesar de sua sabedoria sobre o Amor e a sociabilidade primordial, está imersa em sua facticidade. Não consegue ir além desta estrutura estranhada de mundo social. Esta é a representação alegórica dos oprimidos, ou dos escravos – na dialética de Hegel.
O mundo dos oprimidos é um mundo monótono. É o que diz a raposa para o Pequeno Príncipe: “Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. E isso me incomoda um pouco.” O que incomoda a raposa é a dimensão pseudo-concreta do cotidiano. Ela diz que incomoda “um pouco” – o que significa que a monotonia não subverte seu estilo de vida, obrigando-a, a ir além do estar-aí no mundo. O seu incomodo é decorrente da dimensão fetichizada das relações sociais e do cotidiano abstrato das pessoas: “Todas as galinhas se parecem e todos os homens também”. Na verdade, ela não se incomoda com a divisão hierárquica entre caçadores e caçados. O que a raposa não percebe, pois está imersa na consciência contingente, é que a instituição da divisão do trabalho, que produz a ordem de caçadores e de caçados, e a monotonia de uma estrutura de classes, de uma ordem funcional (e mecânica), pois nada poderia surpreender no mundo da natureza, com suas leis férreas, é que produz a abstratividade das pessoas.

Contra o fetichismo do cotidiano, a raposa, imersa na consciência contingente, não poderia sugerir a subversão da ordem natural do mundo, tendo em vista que a fábula e sua forma alegórica constituíram o personagem com seus limites intrínsecos. Numa fábula, uma raposa é apenas uma raposa, quando poderia ser um homem emancipado da ordem do capital. A estrutura estética da fábula não permitiria a interversão dialética, o que poderia ocorrer, por exemplo, nos contos de fadas, quando beijado, o sapo se transforma, num passe de mágica, um príncipe encantado.

Deste modo, a raposa é a representação da consciência contingente dos oprimidos, que estão imersos na monotonia e no incomodo. Apesar disso, é um personagem capaz de expressar a sabedoria da sociabilidade primordial. É a raposa que ensina o que é o Amor para o Pequeno Príncipe. E não apenas isso – na perspectiva de Saint-Exupéry, o ato de cativar e a produção do Amor é um ato subversivo, capaz de instituir a sociabilidade plena no interior da ordem do capital. O que significa que Saint-Exupéry admite a possibilidade de uma ordem dual; de locis de vida significativa e de pessoas emancipadas da abstratividade do fetichismo das mercadorias. “Então será maravilhoso quando me tiveres cativado” – diz a raposa. Ou ainda: “..se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol”.

7. A biopolítica do Amor

O que nos resta perguntar é se é possível uma vida plena de sentido no interior da ordem do capital. Para Saint-Exupéry e sua fábula, apenas o Amor permite constituir os nexos orgânicos de um sócio-metabolismo alternativo à ordem do capital. O Amor no sentido de uma amizade plena é um sentimento desconhecido ou “algo quase sempre esquecido” na sociedade produtora de mercadorias (Adorno e Horkheimer observaram que “toda reificação é esquecimento”) (ADORNO E HORKHEIMER, 1985:78). O Amor como práxis prático-sensível de interação social com o Outro, na ótica de Saint-Exupéry, poderia ser um elemento compositivo de uma nova moral (e uma nova ética) como pressuposto de uma emancipação para além da ordem do capital.
Nesta seção XXI de O Pequeno Príncipe, apreendemos os elementos de uma proposta política de novo tipo. Saint-Exupéry sugere em 1942 uma biopolítica, uma política sócio-metabólica, limitada por pertencer ainda à ordem da cotidianidade. Mas é do cotidiano e na perspectiva dele, que se pode constituir as forças existenciais para a emancipação humana. Antes de Herbert Marcuse e da contracultura, Saint-Exupéry constatou que o Amor, não no sentido instrumental ou pueril da ilusão romântica, como disseminado pela ordem burguesa, seria subversivo à lógica do capital. Entretanto, teria Saint-Exupéry apreendido os limites desta biopolítica do Amor no interior da ordem do capital?

A sabedoria do Amor é transmitida pela raposa, a representação alegórica dos oprimidos imersos na sua contingência cotidiana. É sua imersão contingente no cotidiano que a coloca diante da tragédia. Na verdade, existe uma tragédia na seção XXI de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. A raposa possui uma sabedoria da tragédia. Ela sabe que chegara a “hora da partida” daquele que a cativou. Isto é, a presença do Amor é precária. Diz a raposa: “Ah! Eu vou chorar!”. Ora, a presença do Amor é fluída na ordem do capital. Esta é a tragédia de uma sabedoria – a sabedoria do Amor. Diante do desalento, mas não desencanto, da raposa, o principezinho diz: “A culpa é tua. Eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...”. E a raposa diz: “Quis”. “Mas tu vais chorar!” – disse o principezinho. “Vou”, disse a raposa. E o Pequeno Príncipe arremata: “Então, não terás ganho nada!”. “Terei, sim, por causa da cor do trigo.”, disse a raposa.

8. A Tragédia do Amor

Eis a última lição da raposa para o Pequeno Príncipe. Estamos num segundo momento da exposição da seção XXI do conto de Saint-Exupéry. É o momento da tragédia, o que significa que existe um ato de catarse. A impossibilidade da realização plena do Amor e de seu sócio-metabolismo é uma tragédia na ordem pessoal e da subjetividade estranhada. Como tragédia, subsiste uma aprendizagem existencial que ainda permanece na ordem da contingência. A raposa disse: “Terei, sim, por causa da cor do trigo”.

Certa vez, a raposa disse para o principezinho: “Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado, O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.

O que tal passagem sugere é que o Amor é capaz de re-significar as coisas do cotidiano. Ele dá vida à natureza morta. Como o próprio ato teleológico do trabalho, é capaz de dar vida aos mortos, como observou certa vez Marx. É provável que o Amor, expresso pela sabedoria da raposa, o ato de cativar, seja a expressão, no plano do sentimento, da atividade do trabalho como categoria ontológica fundante e fundamental do ser social.

“Os campos de trigo não me lembram coisa alguma”, disse a raposa. “Eu não como pão” – afirmou ela (é o mesmo que o principezinho disse para as rosas – “vós não sois nada ainda”). Ora, como salientamos acima, apenas o trabalho – e o Amor – são capazes de criar valor (que é fonte do dever-ser). Mas o trigo, para a raposa – diferentemente das rosas, para o principezinho - iria adquirir valor através da reminiscência do Outro, o único capaz de ser fonte do Amor. Foi a reminiscência do principezinho, com seus cabelos dourados, que constituiu na subjetividade da raposa um significado para o trigo. O trigo passou a valer alguma coisa. Antes, o trigo para a raposa, não valia nada. Foi através da mediação do principezinho, que cativou a raposa, que o trigo adquiriu vida: “O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...”.

É apenas através do Outro, ou como diria Hegel, de outra consciência de si, que a natureza adquire um significado de vida e atributos como a beleza (o que significa que o Belo – e porque não, o Bem – objeto da Estética e da Ética, respectivamente, possuem um lastro societário profundo, pois são atributos sempre mediados pela relação social com o Outro). Será o principezinho que constituirá o amor da raposa pelo “barulho do vento no trigo”. É o ato de amor mediado pela Natureza. Aliás, o ato de cativar não apenas dá uma significação ao Outro, mas à Natureza morta que o cerca. Isto é, uma significação através da reminiscência e da memória.
Mas existe uma diferença crucial na relação mediativa do Amor entre a raposa e o principezinho. O trigo é o elemento mediativo da reminiscência da raposa, cativada pelo principezinho como consciência de si (diríamos no sentido hegeliano, a consciência de si duplicada). Por outro lado, as rosas é o elemento mediativo da reminiscência do principezinho, “cativado” pela flor. Ou seja: a raposa foi cativada pelo Pequeno Príncipe, que possui, no plano alegórico da fábula de Saint-Exupéry, uma representação antropomórfica. Pelo menos no plano da forma, a raposa é cativada e constituiu sua relação de Amor, por uma representação humana. Com o Pequeno Príncipe ocorre o contrário. Ele é cativado pela flor, uma representação natural-fetichizada do Outro humano-genérico. Esse detalhe talvez expresse sua imersão no mundo fetichizado e a solidão profunda do principezinho como representação da burguesia esclarecida.

É interessante que a construção do personagem do principezinho é complexa, remetendo a uma figura aristocrática, símbolo do Poder como expressão da relação primordial do Capital. Como já discutimos, a sua representação como criança e seu diminutivo (principezinho), sugere uma espaço de imaginação e de negação do principio de realidade (o pequeno príncipe ainda poderia almejar a ser feliz, apesar de ser Príncipe e cair na solidão do Poder).

A título de Conclusão

Aos 31 de julho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry, aviador, poeta e escritor, mas acima de tudo, um humanista, desaparece ao realizar sua oitava missão de reconhecimento sobre a França. Seu pequeno conto “O Pequeno Principe” possui um importante valor intelectual-moral. Saint-Exupéry só escreveu aquilo que viveu, mas não no sentido autobiográfico. Por meio de alegorias, ele apreendeu o sentido da emancipação humana na época da barbárie social. Vivia-se a Segunda Guerra Mundial e seu conto expressa as angústias e esperanças de um homem, que vive as “trevas do seu tempo”.

O “Pequeno Príncipe” foi traduzido para mais de oitenta línguas e dialetos e da qual já foram publicados mais de oito milhões de exemplares. Saint-Exupery recomendou: “leiam de maneira séria”; e lendo este livro seriamente se compreenderá o desespero de seu autor: o mundo está passando por um momento difícil e sério, a Europa em guerra, o avanço do nazismo, a França ocupada, os seus cidadãos reféns, e para ele o pior de tudo: os franceses no exílio estão divididos, cada homem imerso em seu poço de desespero. É preciso recuperar o sentido do ser social no sentido do ser humano-genérico. O que significa que nos tempos de barbárie social é imperativo tocar o coração dos homens, enfim, é preciso libertar o homem da escravidão do mundo fetichizado que nos faz esquecer os valores fundantes e fundamentais da sociabilidade. É necessário trazer o homem para o centro de seu universo.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, M. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Volume II. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
HEGEL, Georg W. F. A Fenomenologia do Espírito. Volume I. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Vozes, 1968.
LUKÁCS, Georg. Per una Ontologia Del Essere Sociale. Volume II. Roma: Editori Riuniti, 1988.
MARX, Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Marx. Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Hucitec, 1985.

22.10.06

A Culpa de Todos Nós
Elementos para uma análise critica de “O Processo” de Franz Kafka




Em “O Processo”, de Franz Kafka, o personagem central, Joseph K. sem o saber está imerso num sentimento de culpa inconsciente. Eis sua tragédia pessoal singular que o atinge naquela manhã. De repente, o “sistema” o acusa sem que ele saiba do que, nem porquê. Mas cada vez mais ele age (ou tenta não agir) como se tivesse culpa. Joseph K. luta contra o sentimento de culpa como um fetiche da subjetividade estranhada que o devora. É curioso que, como observa Friedrich Nietzsche, em “Para a Genealogia da Moral”, em alemão a palavra culpa é a mesma para dívida.

Ora, Franz Kafka, a seu modo, soube expressar, de modo visionário, a natureza grotesca e de certo modo, pós-trágica, das teias da manipulação da terceira modernidade do capital (que se desenvolveria nas décadas após a II Guerra Mundial). A partir da periferia do centro capitalista (Kafka vivia em Praga, no Império Austro-Hungaro), o autor tcheco conseguiu prenunciar, através da sua narrativa fantástica, elementos constitutivos do sócio-metabolismo da barbárie social, do homem singular como individualidade de classe, imerso nos labirintos do capital global.

Mas a tragédia pessoal de Joseph K. é um fato singular extremo: ocorreu com ele e não com outro individuo de classe, homem ou mulher, imerso na sociedade do trabalho estranhado (talvez, em seu íntimo, Joseph K. tenha se interrogado: por que eu?). Estamos diante de uma tipicidade extrema, fantástica, quase fantasmagórica, que impregna os personagens de Franz Kafka (como Gregor Samsa em “A Metamorfose”). A psicanálise diria que é a manifestação do “destino” oculto de todos nós: o inconsciente, permeado de sentimento de culpa. Os existencialistas até poderiam interpretar a sina de Joseph K. como sendo um dado ontológico da perda irremdia’vel do homem no mundo. Dizia o Sartre existencialista, “o homem é um ser jogado no mundo, destinado à morte”. Mas a sociologia critica apreenderia, por outro lado, elementos sócio-históricos que explicariam o hic et nunc (o aqui e o agora) desta manifestação inconsciente como fato sociológico: a estrutura social da sociedade das mercadorias e do trabalho estranhado, que aliena o homem do controle de suas condições objetivas e subjetivas da produção de sua vida material.

Na verdade, em “O Processo” não existe uma metafísica da culpa ou do estranhamento como dado ontológico do homem. Se observarmos com cuidado, iremos verificar que Kafka trata em seu romance clássico, de fenômenos sociológicos candentes da segunda modernidade, prenunciando deste modo, a própria negação do modernismo clássico, constituindo assim uma nova forma romanesca. Em sua narrativa, estão categorias sociais histórico-concretas como o funcionário corporativo, o empregado da área de administração de uma empresa privada ou pública (vale dizer que o mundo social de “O Processo” é o mundo do funcionário corporativo), representação típica da persona do capital e do homem comum como mero trabalhador assalariado imerso no cotidiano da pseudo-concreticidade (ora, o que era a vida cotidiana de Joseph K.? Como podemos observar, ela estava imersa em desejos ocultos e contidos). No mundo social de Franz Kafka as personas do capital tornam-se funcionários corporativos e todo trabalhador assalariado aparece como o homem comum, pequeno-burgues assalariado (como Joseph K. ou Gregor Samsa).

Enfim, em Kafka não há euforia, mas só angústia com os novos tempos. O espírito modernista contém em si, euforia e angustia. Mas Kafka não é modernista. Sua narrativa é quase pós-modernista, um pós-modernista na segunda modernidade do capital; o que é um paradoxo notável, tendo em vista que o espírito modernista constituiu a segunda modernidade. Por isso, sua condição de visionário do drama burguês tardio.

Joseph K., empregado mais qualificado de banco (como Gregor Samsa, vendedor ambulante, empregado de uma firma do comércio), posta-se, diante de sua vida transfigurada numa certa manhã. Se a narrativa de Kafka, tanto em “A metamorfose”, ou “O Processo”, se iniciam numa certa manhã, na aurora do dia, no despertar de uma noite de sono, seu discurso romanesco possui elementos oníricos. Aliás, não há despertar em Kafka. O que se vive é um eterno pesadelo, quase surrealista.

Tal como Dom Quixote de Cervantes, Joseph K. é um estranho no mundo do capital. Se Quixote delirava e seu destino é trágico, Joseph K. não delira – é o mundo social como fetiche (e por ser fetiche) que alucina e o envolve. Eis o sentido social de sua tragédia pessoal. Ele é parte de uma alucinação grotesca, permeada de sombras, de claros-escuros.

Em Kafka a inversão estranhada está pressuposta na própria posição dos elementos romanescos. O personagem é parte de um delírio onírico do mundo. Num primeiro momento, podemos dizer que não é o sujeito que se desestrutura, mas sim o mundo que o cerca (o que invalida, deste modo, a análise meramente psicanalítica).

Entretanto, podemos perguntar: o que é o sujeito, nas condições de crise da objetividade, que marcou a visão de mundo burguesa na virada para o século XX, senão o próprio mundo ? Em última instância, é o nada, o vazio. Assim, o sujeito em Kafka está suspenso em si, sem fundamentos, pois seu terreno ontológico se desmanchou. O homem, o herói romanesco, está suspenso. É desta forma que ocorre a morte do herói burguês. Ele morre abstraído do mundo que o concebeu. É o mundo delirante que o consome num pesadelo persistente. Mas não se trata de um pesadelo, de um estado onírico, mas da própria existência social do sujeito burguês.

Com Cervantes e Kafka, o gênero romance expõe sua capacidade heurística de apreensão das tendências de desenvolvimento do sócio-metabolismo da civilização do capital. Se Cervantes prenunciou no século XVI, no bojo da primeira modernidade do capital, os impasses do modernismo, a tragédia do herói problemático diante da ordem moderna propriamente dita, com seu desencantamento do mundo (como diria Max Weber); Frank Kafka, na primeira metade do século XX, prenuncia no bojo da segunda modernidade, as situações grotescas que iriam se exacerbar nas condições históricas da terceira modernidade e do sócio-metabolismo da barbárie social.

Podemos dizer, deste modo, que Kafka é o Cervantes do capitalismo apodrecido. Kafka prenuncia não apenas a morte do herói no romance burguês, que enquanto representação contingente da individualidade de classe não encontra horizontes utópicos diante de si; mas prenuncia a abolição do próprio problema: ora, se há apenas o processo, sem que se saiba qual a acusação, não há problema. Aliás, o problema se identifica com a própria existência em si e para si. A acusação é tão incognoscível quantos os desígnios da existência.

Numa apreensão imediata, a parábola de Kafka, no limiar da própria negação da forma romanesca, trata do non-sense e da existência sem sentido. Mas seria mesmo sem sentido ou seria apenas existência. Talvez sem sentido fosse buscar sentido nesta existência burguesa, como busca Joseph K através do desvelamento do seu processo.

Franz Kafka é o escritor da barbárie social, contida in germe no capitalismo financeiro, o capitalismo imperialista, da era da financeirização, onde a lógica das dividas permeia a fenomenologia da produção e reprodução social. Por isso, o sentimento de culpa que move Joseph K. é a culpa imputada, tão abstrata quanto a individualidade de classe imersa em sua existência contingente, ao sabor da sorte e do azar, como num imenso "cassino global"; e tão abstrata quanto o trabalho produtor de mais-valia, o trabalho estranhado do industrial worker em “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Além disso, o mecanismo sócio-psicológico que constrange Joseph K. é o ardil da culpabilização da vítima, tão utilizado no capitalismo neoliberal, através por exemplo, da ideologia da empregabilidade que tende a culpar a vítima do desemprego pela sua tragédia pessoal. O ardil da culpabilização da vítima é um dos elementos do sócio-metabolismo da barbárie. É uma tipo de avassalamento da subjetividade humana. Na verdade, a tragédia pessoal de Joseph K. é a apropriação devastadora de seu sentimento de culpa, ligado à dimensão inconsciente de sua singularidade em si, pelas instâncias sistêmicas ocultas. Foi esta manipulação do “sistema” que o transformou em vítima de si.

Em Kafka, o processo que constrange Joseph K. se confunde com a própria teia da vida, tão oculto quanto seus desígnios. Assim, o romance “O Processo” pode ser considerado a alegoria grotesca da vida do individuo de classe nas condições históricas determinadas do capitalismo das dividas, do capitalismo financeiro, descrito por Rudolf Hilferding e considerado por Lênin como sendo a etapa final do capitalismo moderno.

Seria interessante apreender na estrutura narrativa de “O Processo”, obra problemática em si, tendo em vista que é fragmentária, alguns elementos narrativos que permitam uma reflexão sobre a fenomenologia da barbárie social. O enredo de “O Processo” é quase um laboratório virtual onde podemos constatar a sintomatologia de uma subjetividade negada a partir da própria alucinação que acomete o mundo social que lhe cerca. Como salientamos, o delírio no romance de Kafka não está no personagem Joseph K., mas no seu entorno social. É um caso de delírio objetivo, tal como se transfigura nas etapas de bolhas especulativas do capitalismo das dividas. O que quermos dizer que Kafka sugere uma metáfora subjetiva dos tempos de financeirziação exacerbada.

Ora, o que se fazer quando a alucinação é condição estrutural do próprio objeto que funda a subjetividade do sujeito? Não há saída em “O Processo”, apenas apelos que se esgotam, pouco a pouco. O romance kafkiano pode nos ajudar a refletir, de forma critica, sobre a sociedade burguesa em sua etapa de sócio-metabolismo da barbárie.

29.10.05

As Perdas de Cipriano Algor
Uma Análise Crítica de A Caverna, de José Saramago

A literatura é um campo aberto para a reflexão sociológica. Através dela podemos nos dar a oportunidade de refletirmos sobre o mundo dos homens e desvelar suas relações sociais. É o iremos tentar fazer neste pequeno ensaio critico sobre o Capítulo 1 do romance A Caverna, de José Saramago. O objetivo é contribuir para a prática de reflexão sociológica através da literatura. Ou seja, o exercício de uma reflexão critica sobre o mundo burguês através da literatura romanesca.
Este não é um artigo de crítica literária, embora consideremos a importância desta especialidade, mas sim um ensaio de literatura e sociologia, onde o romance é um pretexto para a reflexão crítica sobre a civilização do capital. Ao ler o capítulo 1 do romance de Saramago divagamos sobre traços da sociabilidade estranhada do capital. Acompanhamos o autor em seus rastros literários e divagamos, numa perspectiva sociológica critica. Deste modo, o que temos são meras indicações para uma investigação sociológica, apreendidas a partir da leitura da prosa literária de Saramago.

O tema da perda é constante em A Caverna, de José Saramago. Cipriano Algor é o personagem principal desta tragédia de perda. Perda do produto do trabalho, perda do trabalho, perda de si, perda dos outros...Deste modo, o tema da alienação e do estranhamento é um tema crucial em Saramago. Este também é tema constante nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx (1842). Em seus manuscritos de Paris, o jovem Marx se debruça sobre o processo de modernização capitalista e seus efeitos sobre homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho. Este se tornará o eixo temático constante das incursões teóricas de Karl Marx (e de Friedrich Engels) em sua crítica da lógica férrea do capital).

Na verdade, o drama da modernização capitalista, do avanço da grande indústria e do mercado mundial, é o drama da alienação com seus múltiplos impactos sociais. O trabalho vivo está imerso num complexo de perdas, de desenraizamento, lançado no mundo, nu e desarmado. Esta é a perda da proletariazação e da própria condição proletária, que iria marcar a modernidade do capital. Mas existem etapas do processo de perda, de alienação e de estranhamento. Ele é um processo com gradações de múltiplas intensidade.

Existe, por exemplo, a perda como proletarização. É o caso de Cipriano Algo – ele é um artesão, com negócio próprio, que se encontra desvalorizado pelo mercado mundial, cuja expressão é o Centro. Ele ainda não é um proletário, mas um artesão em processo de proletarização, pois logo irá à falência e perderá seu trabalho, seus meios de produção e sua própria atividade de vida. O destino de Cipriano é o de milhões e milhões de pequenos artesãos que se proletarizaram no decurso das Revoluções Industriais que marcaram o capitalismo moderno (não seria a globalização mais uma forma de Revolução Industrial dos nossos tempos?).

Os velhos artesãos foram obrigados a abandonar seu trabalho e ir trabalhar nas manufaturas. Alguns pereceram na miséria e no desamparo social. Enfim, o capitalismo afluente é uma máquina de moer gente, que, deixado por si só, aparece como um “moinho satânico”, como diria Karl Polanyi em “A Grande Transformação”. Cipriano está, portanto, imerso na primeira etapa deste processo histórico de perda ontológica do homem capitalista.

É a etapa mais cruel, pois o trabalho vivo ainda preserva a memória do que foi e tem a lúcida percepção de que está deixando de ser o que é. Existe uma dor profunda que percorre “A Caverna” – a dor da perda dos meios de produção da vida, uma dor que o operário e o empregado assalariados não mais tem, pois estão imersos no sistema do capital, vendo-o com certa naturalidade (ou “fetichismo”), aceitando o destino do trabalho assalariado.

Por exemplo, este é o caso de Marçal Gacho, genro de Cipriano, empregado do Centro, mero trabalhador assalariado, guarda residente deste império comercial. Marçal está tão estranhado quanto Cipriano. Mas o estranhamento de Cipriano é outro - ele sente a dor da perda própria do destino típico dos desenraizados.

Quem é operário ou empregado, sente outro tipo de perda e de estranhamento – a insatisfação com o que faz, a não-identidade com sua atividade laboral, a alienação do produto do trabalho, e portanto a alienação de si e dos outros (tudo aquilo que Marx tratou nos Manuscritos). Entretanto, Cipriano ainda não sente tais determinações sistêmicas do ser-aí capitalista. Ele está ainda na primeira fase, no processo de perda, onde a dor é perplexa, desnorteadora, intrinsecamente existencial, pois ele sente, no âmago da alma, a perda de uma parte de si. Ele ainda é artesão e cultiva seus ideais.

A idéia de desenraizamento é muito forte em “A Caverna”. Levando às últimas conseqüências, é a idéia de arrancar da terra (ou do barro, matéria-prima do trabalho artesanal de Cipriano Algor) as raízes, e jogá-las ao leú. Deste modo, Cipriano não é o proletário que Marx trata em seus Manuscritos de 1844, pois aquele já está imerso no sistema da produção capitalista e da grande indústria. Cipriano ainda não é proletário - está no limiar do Nada, da não-futuridade. Ele contempla o Abismo e projeta sua angústia contida.

Cipriano Algor vive (e sente) o drama da alienação em seus primórdios - é a alienação/estranhamento como despossessão e espoliação de sua atividade laboral, de seu pequeno negócio pelas forças do mercado mundial. Por isso, é interessante apreender o sentido particular deste tipo de estranhamento de Cipriano Algor. É um estranhamento de transição, talvez mais doloroso, pois ainda existe a memória do ser que está sendo desefetivado (o próprio Marx considera a alienação como desefetivação).

Mas Cipriano não vive de memórias, embora as tenha em demasia (Saramago não usa flashbacks). Não lamenta o passado. Encara o presente em si, buscando saídas, até acreditando nelas. Enfim, o próprio Centro ainda lhe dá (ou parece que dá) alternativas de vida. Existe ainda certa margem de ilusões, tão precárias quanto a condição humana de Cipriano Algor.

Enfim, tal etapa de perda primordial é caracterizada pelos tons de cinza, de claro-escuros, idas e vindas, tal como a própria trajetória de Cipriano, quando se desloca até o Centro para vender suas mercadorias e retorna para sua pequena aldeia. É importante identificar a fenomenologia de tal transição dolorosa.

É claro que Cipriano tem sorte, pois, de imediato, possui alternativas de vida (indo a falência, poderá viver com a filha e o genro no Centro) – um dado contingente, do personagem em si. Mas cabe dizer – esta vida de Cipriano é a vida na própria morte, morte de si, pois viver no Centro é uma morte a prazo para quem, um dia, teve seu próprio negócio. Seria outro tipo de vida – poderia Cipriano almejar vivê-la?

Um detalhe curioso, mas sintomático: como escritor genial, Saramago joga com as palavras. Seu estilo é corrido, veloz, sem pontos e ponto-e-virgulas. Tal como a vida moderna, não dá folêgo ao leitor. A forma literária expressa o conteúdo da vida perdida. Saramago precariza a forma romanesca, subvertendo o estilo narrativo. Expõe a crise da modernidade no ato de escrever. É irônico em demasia.

Em "A Caverna", um romance de perdas irremediáveis, o cão de Cipriano chama-se Achado. José Saramago é tão irônico quanto Graciliano Ramos que deu o nome de Baleia ao cão de seu romance Vidas Sêcas - uma Baleia imersa num mundo sem oceano, o mundo do sertão nordestino; em A Caverna, um Achado imerso num mundo de homens perdidos. A literatura realista vive de ironias - é um artificio da linguagem para expor as lancinantes contradições da realidade do capital.

Identidades

A abertura de A Caverna é a descrição da identidade de Cipriano Algor e de Marçal Gacho e de seu trajeto cotidiano: a ida de Cipriano e de seu genro ao Centro entregar louças. Logo nas primeiras palavras do romance, Saramago apresenta profissão e idade de Cipriano Algor. É oleiro de profissão e tem sessenta e quatro anos. São os indicadores fundamentais de um homem na sociedade do trabalho.

Na verdade, a profissão e a idade de um homem traduzem sua essência de ser genérico na sociedade do capital. Mas Saramago também fala dos nomes e sobrenomes dos personagens. São seus traços humano-pessoais. Na verdade, os sobrenomes ou apelidos dizem algo da essência do ser dos personagens. Mas eles desconhecem tal significado dos sobrenomes.

Estamos diante quase de um estranhamento primordial, um destino oculto impresso na identidade singular dos personagens: “Como já se terá reparado, tanto um como outro levam colados ao nome próprio uns apelidos insólitos cuja origem, significado e motivo desconhecem.” O desconhecimento do significado do sobrenome é, deste modo, o estranhamento primitivo dos personagens de A Caverna.

Um sobrenome não é meramente um apelido, mas, como já dissemos, quase um destino. Diz Saramago: “...aquele algor significa frio intenso do corpo, prenunciador de febre...”. Ao dizer isto, Saramago já prenuncia, de forma alegórica, o destino de Cipriano, o frio intenso de seu corpo despojado pela modernização do capital: o frio que prenuncia a febre que irá acometer Cipriano no decorrer da narrativa de A Caverna.

O romance de Saramago é um romance febril. Vive-se o delírio de uma modernização avassaladora, que despoja um homem de sua identidade pessoal. Cipriano Algor irá deixar de ser oleiro de profissão. No decorrer de A Caverna ele irá ser despojado, desnudado, exposto à tormenta da modernização, que, com certeza, irá lhe provocar uma febre prenunciada por um frio intenso, de uma nova era glacial, de transição para um mundo global.

O sobrenome de Cipriano contém tais significados e motivos, mas ele os desconhece. Saramago apresenta, do mesmo modo, o genro: Marçal Gacho, casado com sua filha, Marta. Seu sobrenome é tão significativo quanto o de Cipriano – “...o gacho é nada mais nada menos que a parte do pescoço do boi em que se assenta a canga.”. Marçal não possui uma profissão, como Cipriano. É um mero funcionário do Centro, que aguarda, com ansiedade, no decorrer do romance, sua promoção como guarda residente.

Talvez possamos dizer que a canga de Marçal é o próprio Centro, suprema alegoria do mercado que parece determinar o destino dos personagens de A Caverna. Em seu sobrenome, Marçal já traz inscrita sua condição proletária, de trabalho servil, que se expressa em sua indumentária.
Enquanto Cipriano traja um casaco civil, Marçal veste um uniforme - “...mas não está armado”, nos diz Saramago. Deste modo, após tratar da profissão, idade, nome e sobrenome, Saramago trata da indumentária deste personagens, que estão sendo conduzidos, naquela manhã, pela camioneta até o Centro.

Os detalhes de Saramago são expressivos. Após um breve comentário da indumentária, Saramago irá tratar das mãos de seus personagens - das de Cipriano, que maneja o volante, e das mãos de Marçal. As mãos, que, tal como o sobrenome, possuem inscritas em si, significados e motivos, marcas indeléveis de trajetórias de vida. Na verdade, o trabalho imprime nas mãos sua forma de ser.

Diz Saramago, das mãos de Cipriano: “As mãos que manejam o volante são grandes e fortes, de camponês...”. Ora, Cipriano é trabalhador manual e suas mãos expressam tal condição de trabalho. Ele não é um camponês, mas traz nelas a marca de homens que ainda preservam sua pequena propriedade. O camponês, tal como um artesão, são pequenos proprietários, preservando sua habilidade profissional e sua autonomia de trabalho.

Mas as mãos de Cipriano prometem sensibilidade, pois ele é um oficial da argila, que obriga, por conta se seu cotidiano de oleiro, o contacto com a maciez da argila. Ele não lavra lavra a terra. Pelo contrário, ele molda a argila, o que lhe garante uma sensibilidade própria. As tratar das mãos, Saramago sugere que o corpo – e as mãos é uma das partes expressivas do corpo – é parte da subjetividade (e, portanto, da identidade) do homem e da mulher.

Tal como o sobrenome, as mãos contém significados e motivos ocultos. Por exemplo, a cicatriz com aspecto de queimadura nas costas da mão esquerda de Marçal, que Saramago não nos diz como, nem onde surgiram, mas que é parte da história de vida do genro de Cipriano. Enfim, após tratar, em poucas palavras, dos sujeitos humanos e de suas múltiplas identidades, Saramago irá tratar, mais longamente, dos objetos e das suas contingências – da camioneta e da sua carga; do trajeto e da região por onde trafega a furgoneta de Cipriano Algor, até o Centro, carregada de louças rústicas. Estamos apenas começando a narrativa densa de A Caverna.


Trajetos e Territórios

José Saramago é um literato do território. Ele nos descreve, com acuidade, nos primeiros parágrafos de A Caverna, o trajeto da camioneta de Cipriano Algor até o Centro. O trajeto e o território é desvelado linha por linha.

Após tratar das identidades dos personagens, Saramago nos apresenta o território que, tal como nome e sobrenome, profissão e corporalidade viva, não deixam de compor a identidade pessoal de Cipriano, Marçal e Marta. Na verdade, o território que Saramago nos apresenta é traço compositivo do trajeto que Cipriano Algor percorre dia-a-dia. Através dele, desta descrição sucinta, Saramago indica os paradoxos da sociedade do Centro.

Primeiro, ele nos diz: “A região é fosca, suja, não merece que a olhemos duas vezes.” Estamos diante de uma paisagem natural degradada pelo modo de produção (e destruição) capitalista. É curioso que tais “enormes extensões de aparência nada campestre” têm o “nome técnico” de Cintura Agrícola, ou ainda, “por analogia poética”, de Cintura Verde.

A técnica se alia à poesia para tergiversar a realidade. A agricultura e o verde que se apresentam na paisagem são meros produtos “artificiais” da produção industrial. O que observamos, nos dos lados da estrada, são instalações agroindustriais: “...grandes armações de tecto plano, retangulares, feitas de plásticos de uma cor neutra que o tempo e as poeiras, aos poucos, foram desviando ao cinzento e ao pardo.” E Saramago, observa: “Debaixo delas, fora dos olhares de quem passa, crescem plantas.”

Estamos diante de uma interversão de significados: agricultura é indústria e verde é cinzento. E as plantas, tal como os homens, estão recolhidos nas tecnoestruturas urbano-industriais. Perguntemos: ainda são plantas? Apesar disso, a linguagem ainda guarda, por ironia do capital, os nomes de Cintura Agrícola e Cintura Verde.

Ora, a agricultura deixou de ser agricultura, e o verde deixou de ser verde. Através dos primeiros detalhes da paisagem paradoxal da sociedade do Centro, Saramago expõe o estranhamento deste mundo social.

No trajeto observamos não apenas a Cintura Agrícola (ou Cintura Verde), mas logo a seguir, a Cintura Industrial. A estrada, diz-nos Saramago, aparece “agora mais suja”. Diante deles surgem “instalações fabris de todo o tamanho, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos de combustível, estações elétricas, redes de canalizações, condutores de ar, pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns vermelhos, outros pretos, chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas, pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio, ninguém sabe o que se estará produzindo ali.”

É uma descrição contundente, sonora, com odor (e estupor), do mundo industrial. Saramago nos apresenta uma base produtiva vinculada ainda à II Revolução Industrial, da grande industria eletro-mecânica, das indústrias de chaminés, da estações de eletricidade e do combustível de petróleo. Eis o capitalismo da grande indústria, que caracterizou o século XX e que avançou (e ainda avança), com a modernização do capital, sobre territórios e gentes.

Diz Saramago: “...ninguém sabe o que se estará produzindo ali”. Eis a própria representação do trabalho abstrato. Tal como em “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin não sabemos o que se estará produzindo naquelas instalações industriais, com suas linhas de montagem fordista-taylorista. Diante de nós, apenas a máquina do capital.

“Depois da Cintura Industrial principia a cidade...” – diz Saramago. Mas não é a cidade propriamente dita, porque entre esta e a Cintura Industrial, o que se vê “são aglomerações caóticas de barracas feitas de quantos materiais, na sua maioria precários, pudessem ajudar a defender das intempéries, sobretudo da chuva e do frio, os seus mal abrigados moradores.”
Depois da natureza natural degradada, Saramago nos apresenta a natureza social degradada. “É, no dizer dos habitantes da cidade, um lugar assustador”.
Na verdade, Saramago trata, neste momento, de populações pobres, dos bairro dos excluídos, do exercito industrial de reserva, da superpopulação supérflua, sub-homens de uma subnatureza, resíduos irremediáveis da sociedade do capital, excluídos do próprio território da cidade. Percebemos que eles estão entre a indústria e a cidade propriamente dita como espaço de civilização. Vivem, deste modo, como os deuses da Antiguidade, nos intermundia (em latim), ou seja, entre-mundos.

Saramago se detém a tratar da logística dos assaltantes, salteadores de estrada, que, divididos em grupos, provocam armadilhas e limpam os caminhões que se dirigem ao Centro. Vejamos: primeiro, Saramago nos apresenta a Cintura Agrícola; depois, o Cinturão Industrial; logo a seguir, quase como refugo deste, o bairro dos excluídos e depois, uma zona intermediaria, antes de atingirmos a cidade propriamente dita.

É o que nos diz Saramago: “Entre as barracas e os primeiros prédios da cidade, como uma terra-de-ninguém separando duas facções enfrentadas, há um largo espaço despejado de construções...”. O que observamos, neste trecho da descrição, é que Saramago sugere que a modernização industrial avança a todo vapor, através das “redes entrecruzadas de rastos de tratores” que com suas grandes pás mecânicas, “essas implacáveis lâminas curvas”, como diz ele, “sem dó nem piedade, levam tudo por diante, a casa antiga, a raiz nova, o muro que amparava, o lugar de uma sombra que nunca mais voltará a estar.”

Nossos escritor é quase poético, uma poética da modernização do capital, que desmancha tudo que é sólido, “sem dó nem piedade”. A máquina do capital leva tudo, inclusive “o lugar de uma sombra que nunca mais voltará a estar.” É a dor da perda, do estranhamento que percorre a descrição de Saramago.

Neste momento, é claro, certa dor da modernização, quase à la Fernando Pessoa, que tanto lamentou a modernidade devastadora do capitalismo urbano-industrial em Portugal nos primórdios do século XX. Os alisamentos causados por grandes pás mecânicas, com suas implacáveis laminas curvas são, na narrativa de Saramago, a metáfora genial da homogeneização mecânica do capital e de seu movimento de auto-valorização. Mais uma vez, a lógica do trabalho abstrato se imprime no território devassado.

Mas, Saramago vislumbra detalhes de resistências contingentes através de fragmentos-objetos, e talvez memórias e reminiscências, expressão de sobrevivências que nos fazem apreender, na plena descontinuidade diruptiva da modernização do capital, continuidades do velho mundo que nunca mais voltará a estar.

Diz ele, com vigor poético: “No entanto, tal como sucede nas vidas, quando julgávamos que também tinham levado tudo por diante e depois reparamos que afinal nos ficara alguma coisa, igualmente aqui uns fragmentos dispersos, uns farrapos emporcalhados, uns restos de materiais de refugo, umas latas enferrujadas, umas tábuas apodrecidas, um plástico que o vento traz e leva, mostram-nos que este território havia estado ocupado antes pelos bairros de excluídos.”
Assim, são tais objetos, fragmentos dispersos, que nos fazem lembrar daquilo que ocupava antes, o território e que nunca mais voltará a estar. É interessante que, neste momento, Saramago nos dá uma lição de vida quando nos diz que, as vezes, “quando julgávamos que também tinham levado tudo por diante e depois reparamos que afinal nos ficara alguma coisa”.

Ora, a lógica dialética da modernização do capital possui, em si, a lógica da vida (e da morte). Apesar de tudo, apesar daquilo que nunca mais voltará a estar, da fluidez passageira, que leva tudo por diante, de maneira implacável, as vezes reparamos que afinal nos ficara alguma coisa, talvez alguns objetos e, vinculados a eles, memórias e reminiscencias daquilo que havia estado lá e que nunca mais voltará a estar.

Finalmente, podemos dizer que o avanço da máquina-trator, que alisa o território, antes ocupado pelos bairros de excluídos, é expressão do avanço da cidade, símbolo da modernidade do capital. Como sugere Saramago, é quase um destino. Ele nos diz: “Não tardará muito que os edifícios da cidade avancem em linha de atiradores e venham assenhorear-se do terreno, deixando entre os mais adiantados deles e as primeiras barracas apenas uma faixa estreita, uma nova terra-de-ninguém, que assim ficará enquanto não chegar a altura de se passar à terceira fase.”

Coisas, números e homens

Em seu trajeto típico para o Centro, Cipriano Algor divaga sobre a paisagem. Ele vive num mundo social em que, como disse Marx n’O Manifesto Comunista, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Na verdade, o Centro representa a civilização do capital, que avança, destruindo e construindo novas paisagens, refazendo a natureza à sua imagem e semelhança.
O mundo do capital é o mundo do dinheiro e o mundo da mercadoria. Se tivermos que dar um conceito de capital diríamos que capital é esse movimento perpétuo em que dinheiro se interverte em mercadoria e mercadoria se interverte em dinheiro, mais-dinheiro em busca de auto-valorização. Por isso, a perpétua destruição-criação constante, pari pasu ao desenvolvimento do comércio mundial.

Ainda neste primeiro capítulo de “A Caverna”, Cipriano Algor, ao chegar ao Centro, para deixar lá seu genro, Marçal Gacho e entregar seu fornecimento de olaria, se depara com um quarteirão em demolição. É uma passagem interessante porque, mais uma vez, Saramago irá divagar sobre o tema da destruição criativa, ou da destruição dos prédios, um traço recorrente da modernidade do capital.

Não é a toa que a civilização moderna irá imprimir sua marca nos planos urbanísticos sempre criados e recriados. Por um momento, Cipriano está fascinado pelo canteiro de obras daquele quarteirão em demolição. Diz Saramago: “Olhou para os prédios que estavam a ser arrasados”. Talvez aqueles prédios representassem o próprio mundo vital de Cipriano que logo iria ser arrasado pela trágica noticia de que o Centro iria cortar seu fornecimento de olaria.

Diz ele: “Quando daqui a dez dias vier recolher o genro não haverá qualquer vestígio destes prédios, terá assentado a poeira da destruição que agora paira no ar, e poderá até suceder que já esteja a ser escavado o grande fosso onde serão abertos os cavoucos e implantados os fundamentos da nova construção.”

Mas a narrativa de “A caverna” é uma narrativa de destruição/construção de um novo (e velho) mundo social, pois é a partir desta vida ativa, de escavar para construir, que iremos nos deparar, mais adiante, no final do romance, com a caverna e seu significado metafísico.
Naquela manhã Cipriano está divagante. Como ele próprio diz, “distraíra-se com a demolição dos prédios e agora queria recuperar o tempo perdido...”. E divaga sobre a natureza do tempo, ainda impregnado pela dura realidade da modernização avassaladora.

Diz ele: “...nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade, que o tempo que criamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás, esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo,que déssemos pela falta dele.”
Cipriano está na fila de veículos que aguardam a entrega das mercadorias no Centro. Estava em número treze. Embora não fosse pessoa supersticiosa, Cipriano está inquieto com a má reputação deste numeral. Eis um personagem problemático, imerso em contradições íntimas, reflexo de seu tempo de modernização.

Cipriano, mais uma vez, depara-se com problemas metafísicos. O número 13 lhe perturba. Diz Saramago: “Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade...”. E pondera: “...de facto, os números não existem na realidade, às coisas é indiferente o número que lhe dermos, tanto faz dizermos delas que são treze como o quarenta e quatro...”. E logo o oleiro conclui: “As pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares.”

Mas o que Cipriano talvez não saiba é que, embora as pessoas não sejam coisas, as coisas governam o mundo. E as coisas, como os números, não existem na realidade. Aliás, as coisas são indiferentes à realidade das pessoas.

A seguir, Cipriano irá se deparar com o mundo das coisas, o mundo do capital, o fetiche-mor que governa as pessoas. Cipriano Algor será surpreendido e alarmado pela decisão do Centro em adquirir apenas metade de suas mercadorias. É o momento-chave de inflexão da trama narrativa de “A Caverna” (o outro momento-chave de inflexão seria o aparecimento da caverna, próximo do final do romance).

Segundo o subchefe da recepção, “as vendas baixaram muito nas últimas semanas, provavelmente iremos ter de devolver-lhe por falta de escoamento o que está em armazém.”
É a lógica do mercado, indiferente às pessoas que se impõe a cada um de nós. Cipriano pergunta: “...diga-me a quem vou vender a outra metade”. Diz o subchefe: “Isso não é comigo, eu só cumpro as ordens que recebi.” Ao buscar falar com a chefia superior, o Chefe do departamento, encontra a indiferença do atendente: “Não, não vale a pena, ele não o atenderia.”

Estamos diante de uma situação kafkiana. Cipriano não estava mais diante de divagações metafísicas sobre o tempo e os números. Deparava-se diante de um fato social, ou seja, a sua obsolescência como produtor independente, a redundância do produto de seu trabalho como sendo a redundância de si próprio.

Diz ele, apelando para a solidariedade de classe: “Vejam esta situação, um homem traz aqui o produto do seu trabalho, cavou o barro, amassou-o, modelou a louça que lhe encomendaram, cozeu-a no forno, e agora dizem-lhe que só ficam com metade do que fez e que lhe vão devolver o que está no armazém...”.

Eis a lamentação profunda de Cipriano Algor. Ao desvalorizar parte de seu trabalho, o Centro desvaloriza parte do próprio Cipriano. Uma parte de si é alienada e pior – excluída do circuito da valorização. Ele não apenas é explorado, mas tornado obsoleto, como uma coisa qualquer. Mas como ele afirmara antes, “as pessoas não são coisas...”.

Estamos diante, deste modo, de um fenômeno de aguda alienação. Cipriano exclama: “...quero saber se há justiça neste procedimento.” Talvez o que ele não saiba é que a justiça é uma categoria do mundo dos homens, mas o que se trata, neste caso, é do mundo das coisas, do fetiche do mercado, indiferente às pessoas, mas não aos números, pois a calculabilidade da mais-valia é que comanda a lógica da valorização.

Às coisas não é indiferente os números, mas sim às pessoas.Os números indicavam para o Centro que as vendas das mercadorias de Cipriano Algor tinham baixado. Por isso, o Centro cortara metade do fornecimento de louças. O protesto de Cipriano era impotente.

Dentro de si um sentimento de acomodamento: “...as coisas acabarão com certeza por compor-se...”. Entretanto, ele buscava um porquê, tentando contornar as coisas da burocracia, que ninguém sabe porquê. Mas Cipriano buscava uma explicação. Pergunta ele: “Pode dizer-me o que é que fez que as vendas tivessem baixado tanto.” E o subchefe responde: “Acho que foi o aparecimento de umas louças de plástico a imitar o barro, imitam-no tão bem que parecem autênticas, com a vantagem de que pesam muito menos e são muito mais baratas.”
Eis o ponto-de-vista do mercado. Mas Cipriano possui o ponto-de-vista do trabalho, do produtor independente, indignado com a desvalorização de seu produto-mercadoria.

Diz ele: “Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é o barro, é autêntico, é natural. Vá dizer isso aos clientes...”. Mas Cipriano é dissuadido pelo subchefe. Ele ainda não entendera a lógica das coisas do mercado. Na perspectiva do mercado, não existem produtores, mas apenas consumidores-clientes. Cipriano seria incitado a se conformar com sua obsolescência pessoal.

Diz o subchefe do Centro: “...não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora a sua louça só interessará a colecionadores, e esses são cada vez menos.”Este primeiro capítulo de "A Caverna" de José Saramago se conclui com uma constatação amarga de Cipriano, o personagem kafkiano do escritor português, mistura de Joseph K. e Dom Quixote de la Mancha – diz-nos Saramago:
“O oleiro sorriu com tristeza. Não foi o treze, o treze não existe, tivesse eu sido o primeiro a chegar e a sentença seria igual, por agora metade, depois se verá, merda de vida.”

O transtorno de Cipriano ensinara alguma coisa a ele: a sentença do mercado é objetiva, tal como uma realidade indiferente aos números da superstição, não aos números do cálculo do valor. Na verdade, Cipriano se deparara com a realidade da lei do valor.

A Caverna, de José Saramago trata não apenas da perda de identidade sócio-humana de Cipriano Algor, através da precarização e extinção irremediável de seu trabalho, mas da trajetória sinuosa de seu reencontro consigo mesmo através de um fato metafísico: a descoberta da caverna. O significado desta alegoria, sugerida por Saramago, nos remete para além das tragédias impostas pelo processo de modernização do capital.
Giovanni Alves
(2005)